Um erro lamentável: o debate sobre o Minha Casa, Minha Vida em Joinville

Observatório Urbano de Joinville
8 min readMay 14, 2023

Por Ermínio Harvey e Paulo Oliveira

O retorno do programa Minha Casa, Minha Vida (daqui em diante: MCMV) deveria ser saudado em Joinville. Isso porque a cidade tem sofrido com um vácuo lamentável em torno de políticas públicas para moradia nos últimos anos — ou, para sermos mais exatos, tem sofrido com um retrocesso, na medida em que a lei do IPTU progressivo foi, de maneira desvairada, combatida[1] — e pelo fato de a fila de inscritos em programas habitacionais ter aumentado (fontes apontam que hoje ela conta com 19,2 mil inscritos). Ou seja, mais pessoas passam a engrossar o déficit habitacional — composto por desde aqueles que simplesmente não tem moradia até aqueles que sofrem pressão tremenda, acima de 30% da renda, pelo aluguel. Por sua vez, o mercado já se demonstrou completamente incapaz, seja em países ricos ou pobres, de resolver o problema da moradia. Nesse texto iremos retomar as críticas que a atual forma do programa recebeu por parte de alguns vereadores de mentalidade curta, discutir a essência do próprio MCMV e defender que ele deveria ser melhorado em sua constituição e articulado com outras iniciativas, como o IPTU progressivo — o que implica em criticar o governo Adriano (Novo).

  1. Os equívocos na Câmara de Vereadores

A situação calamitosa em torno da habitação em Joinville não é suficiente para sensibilizar os vereadores Nado (Pros), Lucas Souza (PDT) e Sidney Sabel (União Brasil) que votaram contra a legalidade da disposição de três terrenos pela prefeitura para que fossem construídas moradias. Na ocasião, tratava-se do mérito da legalidade porque a discussão foi feita, precisamente, na Comissão de Legislação Câmara de Vereadores de Joinville — o que torna o voto contrário dos três mais disparatado ainda. Os argumentos dos três foram variados: Nado disse que o Costa e Silva não comporta mais pessoas, Lucas Souza que o terreno no Jardim Iririú prejudicaria a segurança do local e Sidney Sabel defendeu que os terrenos já tinham outras finalidades.

Esses argumentos, consciente ou inconscientemente, escondem considerável insensibilidade, preconceitos, e defesa de privilégios sobre a questão da moradia e do déficit habitacional em Joinville. Há, é certo, um déficit na infraestrutura pública em Joinville, no qual terrenos públicos podem fazer falta em eventuais futuras expansões de equipamentos públicos, justamente ainda para esta população de menor renda. De fato as preocupações com a segurança pública e vulnerabilidade social são relevantes. E, sim, o bairro Costa e Silva encontra muitos de seus equipamentos públicos operando acima da capacidade. No entanto, a questão que pode englobar todos estes argumentos é: qual bairro não está com problemas graves em seus serviços públicos? O local que as famílias que integram hoje o déficit habitacional é melhor servido no que diz respeito aos pontos levantados como problema? Para onde devem ir então estas pessoas? É pouquíssimo provável que os vereadores queiram propor que o projeto deva se instalar na porção de maior valor da cidade — os bairros que margeiam o centro, por exemplo — com menor defasagem nos pontos levantados.

Além disso, há alguma proposta de redução ou discussão sobre os potenciais de adensamento populacional que o mercado tem usufruído nestas regiões? Por que em todas estas regiões há uma porção de empreendimentos imobiliários, muito superior ao projeto proposto, sendo construídos mensalmente que também terão influência sobre os equipamentos públicos existentes, mas que não parecem despertar estas discussões? Por que há ressalvas com o MCMV e não há ressalvas com empreendimentos imobiliários privados?

Fica cada vez mais curiosa a proporcionalidade das críticas dos vereadores, que mesmo em face de uma proposta tão tímida, quase etérea, como a da prefeitura, de atender 0,8% do déficit habitacional (projeto de 156 apartamentos, divididos em 3 regiões, frente ao déficit de 19.200 famílias, conforme mencionado), optaram por inviabilizar desde a origem o projeto em regiões com uma infraestrutura e potencial de qualidade de vida superiores frente às suas condições atuais — afinal estas pessoas já existem, habitam a cidade e têm direitos.

Posteriormente, depois da repercussão negativa de terem barrado o projeto ainda em sua dimensão legal por estes motivos, difícil qualificar de outra forma, tacanhos, alguns vereadores exploraram um pouco mais os seus argumentos. Contudo, essencialmente a questão é a mesma e acabaram por não propor nada — exceto, “estudos” (que obviamente são relevantes, mas, nesse caso, soam apenas como pretextos para esvaziar e protelar o debate).

Agora, a base governista do Partido Novo se esforça para fazer uma nova apresentação da proposta, de forma individual para os vereadores — o que indica, para além da pequenez de alguns destes, que talvez existam mais interesses para além do déficit habitacional, que este projeto aconteça sob o controle e conforto de seus limites — políticos e geográficos.

2. Observações sobre o MCMV

Disso tudo, contudo, não se segue uma defesa irrestrita e apaixonada ao MCMV. Ao contrário, a experiência do MCMV em Joinville precisa ser avaliada de maneira rigorosa: a construção em periferias mais ou menos extremas da cidade significou um déficit de infraestrutura às moradias que levaram, por sua vez, a dificuldades de integração social evidentes — acesso à saúde, educação e segurança. A construção nas periferias, uma tônica do MCMV de modo geral, se deu justamente em virtude do fato de que os terrenos mais afastados serem mais baratos e isso garantiu maiores lucros às empreiteiras que construíram os conjuntos habitacionais — aliás, outra marca negativa do MCMV: o protagonismo dos agentes privados na produção do espaço urbano. Esses problemas variados, contudo, não impedem que o MCMV, em seus requisitos técnicos, não possa ser melhorado. Passamos a uma sequência de possibilidades para seu aprimoramento.

  • Atividades econômicas: Um dos principais pontos negativos destas segregações espaciais, para além da falta de equipamentos públicos adequados, seria a própria distância dos pólos de trabalho, o que acabariam por impor mais dificuldades na hora de encontrar e se manter no emprego, além de concentrar pessoas com condições parecidas no mesmo local. Levando os empreendimentos a locais urbanizados há mais tempo, essa população seria mais facilmente incorporada aos trabalhos da região, impactando positivamente também na mobilidade da cidade e do conjunto da população. Uma segunda contribuição neste sentido seria estabelecer comércios nas partes térreas destes empreendimentos, de forma que surjam oportunidades de negócio para os moradores, além de emprego, vida ativa em diferentes horários, segurança mútua, além ainda de possibilitar que o aluguel destes espaços possam contribuir para a manutenção do condomínio habitacional como um todo, equilibrando as eventuais defasagens.
  • Debate sobre zoneamentos: Objetivamente os zoneamentos nos quais estão propostos o MCMV são praticamente o mínimo do que cabe aceitar como sensato. A cidade é organizada em macrozoneamentos mais gerais (Áreas Urbanas de adensamentos prioritários (01 e 02), adensamentos secundários, controlados, especiais, de proteção, rurais, etc) e também sobreposta em uma divisão de zoneamentos mais específica. Os casos do bairro Costa e Silva e Iririu estão nos limites do zoneamento de adensamento prioritário 02. O Vila Nova por exemplo está enquadrado no adensamento secundário (perceba que o Vila Nova foi o que menos recebeu críticas contrárias diretamente; curioso que segue a lógica do quanto mais afastado, melhor). A questão é: que bom que o município está propondo algo menos danoso do que o feito até agora, mas é pouco. Por que não inserir na área de adensamento prioritário 01 (bairros como América, Atiradores, Anita Garibaldi, Bucarein, Saguaçú, etc), nos setores especiais (novamente eles, sendo protegidos), nas centralidades urbanas, tanto do terminal central como dos demais terminais de ônibus? Adicionalmente, isso seria positivo inclusive para a política de transporte público do município, também em enorme defasagem e com problemas seríssimos.
  • Áreas públicas: Talvez não seja a melhor opção construir em terrenos que estavam destinados a outros equipamentos públicos, afinal, sabe-se o quão defasada a cidade está e o acréscimo do MCMV também exercerá pressão por estes serviços. Porém, onde estas pessoas estão hoje, existe ainda menos infraestrutura deste tipo, logo o argumento se torna contestável. O que propomos é que estes bairros em si continuem a estar no mapa da prefeitura para instalação do MCMV, pois possuem infraestrutura pública, ainda que com defasagens, porém que se dê preferência para aplicação de outro instrumento disponível. Que se faça valer as leis que exigem a função social da propriedade privada e se viabilize empreendimentos do tipo nestes terrenos, com investimentos públicos paralelos para melhor equipar a infraestrutura do bairro nos terrenos públicos com usos já definidos. Na discussão sobre a revogação do IPTU progressivo, outro instrumento que poderia ser utilizado também para este fim, foi argumentado que o município já possuía lei para desapropriar imóveis que não estivessem cumprindo sua função social. Então, legisladores, que fiscalizem o cumprimento das leis, pois se há algo que marca o espaço urbano de Joinville é a quantidade de vazios enquadrados nesta situação.
  • MCMV Entidades: A modalidade MCMV Entidades permite uma gestão aproximada dos movimentos sociais. Além disso, concretamente, a implementação dessa modalidade do programa mostrou a possibilidade de construções maiores e melhores. Ainda que não haja movimentos de moradia amplos em Joinville, a simples existência dessa modalidade mostra que há possibilidades maiores oferecidas pelo programa, possibilidades essas que o rechaço dos vereadores acaba por deixar de lado.
  • Aluguel social: esta modalidade, que há mais tempo encontra exemplos em cidades como Londres, Paris, Berlim, etc, tem sido trazida e discutida como alternativa para tratar o déficit habitacional. De forma geral, quanto mais formas distintas aplicadas, com suas discussões e refinamentos, melhor para reduzirmos neste índice. Aqui, trata-se essencialmente de considerar o estoque de imóveis já produzidos e vazio e destinar às famílias necessitadas através de subsídios públicos. Óbvio que também existem pontos sensíveis a serem legislados e monitorados, tanto quanto a corrupção quanto a escalada e definições de preços pelo mercado. No entanto,não podemos ignorar e deixar de propor algo para estes dois dados da cidade: a quantidade de imóveis produzidos e vazios e a quantidade de pessoas na fila de espera do programa de habitação.

3. IPTU Progressivo

A grande questão, contudo, passa pelo IPTU progressivo, um tema recorrente da nossa preocupação. Isso por duas razões principais: 1. o IPTU progressivo é o melhor instrumento redistributivo e corretivo das desigualdades socioespaciais; 2. o aumento do número de imóveis vazios, adequados para a habitação, nos últimos dez anos. Hoje existem mais de 26 mil domicílios vazios na cidade, muito mais que os 15 mil do censo anterior do IBGE (aliás, não é demais lembrar, um instrumento fundamental para a promoção de políticas públicas). Ainda, mais de 12 mil domicílios, que não responderam adequadamente ao censo, podem engrossar esse número. Por essa razão a proposta do governo Adriano deve ser criticada: a simples disposição de terrenos, sem o oferecimento de infraestrutura adequada, já construída em bairros do entorno do centro de Joinville (Glória, América, Bucarein, Anita Garibaldi), enfraquece a sua própria proposta. A construção no bairro Costa e Silva, conforme apontado pelo sociólogo Charles Henrique Voss, é interessante, mas a integração social seria altamente favorecida se as construções se aproximassem de áreas mais providas de estrutura. Enquanto o governo não se esforçar em fazer valer essa lei, na prática, ele também não estará se esforçando seriamente em torno de uma política de moradia adequada.

Desse modo, se de um lado estão os três vereadores já citados, cujas críticas estão muito aquém do MCMV, a proposta de Adriano é apenas parcialmente adequada. Ainda que problemático em alguma medida, o MCMV significaria uma retomada das políticas de habitação na cidade de Joinville e, por isso, seria um passo fundamental na implementação do artigo 6º da Constituição Brasileira e na justiça social. É tempo ainda dos vereadores reverem sua posição, sob pena de terem sua trajetória maculada como aqueles que impediram que pessoas conquistassem um direito fundamental, o direito a um pedaço de chão e a um teto.

[1] Em uma série de textos buscamos criticar a proposta de revogação do tímido IPTU progressivo de Joinville. Em ordem: 10 de maio de 2021: Revogação do IPTU Progressivo, por Ermínio Harvey; 27 de junho de 2021: Ainda sobre o IPTU progressivo, por Paulo Oliveira; 5 de janeiro de 2022: O zumbi: a revogação do IPTU progressivo de volta ao debate, por Paulo Oliveira; 14 de janeiro de 2022: Técnico — o que há de técnico na proposta de revogação do IPTU progressivo?, por Ermínio Harvey.

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