Ainda sobre o IPTU progressivo
Por Paulo Oliveira, professor de filosofia

Em texto lançado nesse site (Revogação do IPTU progressivo) vários aspectos da questão do projeto de lei de revogação do IPTU progressivo proposto pelo vereador Wilian Tonezi (Patriota) foram tematizados. Na última quarta-feira, 23/06, houve audiência pública na Câmara de Vereadores. A jornalista Fernanda Eliza descreveu com bastante fidelidade o ocorrido na seção.
Contudo, percebe-se que é preciso voltar ao tema e desdobrá-lo ainda mais discutindo alguns aspectos do problema que são deliberadamente omitidos por aqueles que querem revogar a lei. Não se deve ceder nada ao espírito delirante e paranoico que orienta suas condutas.
Dados
Em Joinville há 12.111 lotes baldios e 17.754 lotes com menos de 10% da área aproveitada, segundo dados da minuta que orientou a criação da lei do IPTU progressivo. Ainda há 12.331 domicílios vagos segundo o último censo do IBGE. Formalizo esses dados abaixo:

Por que enfatizar esses dados? Eles oferecem a dimensão na qual o IPTU progressivo poderia fazer efeito, a base sobre a qual a medida poderia operar. Além disso, esses dados mostram para qualquer um — desde que não esteja empedernido por concepções chamadas de “liberais” mas que nada mais são que a naturalização da barbárie — um retrato da desigualdade em Joinville. Além disso, um dado auxiliar fundamental é aquele que aponta a quantidade de famílias inscritas na Secretaria de Habitação: 10 mil famílias com cadastro atualizado e outras 7 mil sem essa atualização.
Alguém, com razão, poderia argumentar que os dados acima não contemplam a questão do IPTU progressivo. E estaria certo por duas razões: 1. o IPTU progressivo, segundo a lei de Joinville, aplica-se apenas sobre lotes com menos de 7% da área construída, e não 10%; 2. As áreas abrangidas pelo IPTU não são uniformes por toda a cidade. Essa objeção — que não seria a objeção do supramencionado vereador que quer revogar a lei — é pertinente, mas sobretudo por demonstrar como a lei municipal é limitada. São Paulo, por exemplo, aplica o IPTU progressivo em áreas com menos de 20% de aproveitamento. Além disso, a alíquota do IPTU progressivo em Joinville apenas chega até 12% do valor do imóvel, sendo que o Estatuto das Cidades permite até 15%. Ou seja, a lei em Joinville é bastante tímida e moderada, deveria melhorar bastante, se estender por mais áreas e ter alíquotas maiores. Essas são questões importantes que bem poderiam mobilizar as pessoas em torno do seu aperfeiçoamento. Desnecessário dizer que aperfeiçoá-la não é destruí-la.
Benefícios do IPTU
O IPTU progressivo apresenta benefícios variados para várias classes sociais. Felipe Silveira escreveu um texto instigante e inteligente sobre o IPTU progressivo do ponto de vista dos empresários (ao menos como “tipos ideais”), isto é, como “um instrumento de desenvolvimento capitalista das cidades”.
Além desse tipo de argumentação, vale relembrar como o IPTU progressivo pode ser importante para o aumento da segurança pública. As grandes áreas descontínuas de ocupação de terras, os imóveis vazios (que grassam no centro da cidade, mas também se encontram em algumas extensões dos bairros) tornam as áreas menos habitadas, menos comunitariamente vigiadas e mais propensas a toda a sorte de violências (algumas delas, aliás, bastante graves). Mas não se trata apenas de segurança, mas também de saúde pública: Joinville vive uma epidemia de dengue. A condição para que os agentes da dengue possam inspecionar as casas a fim de impedir a reprodução do mosquito passa, necessariamente, pelo acolhimento deles pelos moradores. Assim, além da inspeção, são oferecidas por esses funcionários públicos fundamentais relevantes informações para impedir a proliferação dos mosquitos. Imóveis e domicílios vazios, fechados, não permitem esse tipo de acolhida o que os torna, potencialmente, criadouros do mosquito e portanto centros transmissores da doença. Entretanto, não é apenas a dengue o problema: há pouco tempo, uma espécie de epidemia de caramujos africanos também assolava a cidade. Casas vazias serviam para a reprodução do exótico animal.
Fundamentação
Todavia, é na fundamentação que o projeto do vereador Tonezi talvez demonstre seu caráter mais problemático. Há nele um planetário de erros.
O texto de fundamentação menciona que a revogação do IPTU se ampara no artigo 5º da Constituição que assegura o direito à propriedade. Contudo, trata-se de um primarismo lamentável simplesmente omitir o que qualquer conhecedor da Constituição que orienta o país sabe, isto é, que se o direito à propriedade é garantido — e é –, ele também é limitado pelo inciso seguinte, o qual atesta que a propriedade tem de possuir uma função social. Para os fanáticos da propriedade, evidentemente, isso nada vale: a propriedade para eles é direito sagrado, inviolável, tresloucado e irrestrito. Voltaremos a isso.
Além disso, o projeto argumenta em torno da inconstitucionalidade do IPTU progressivo porque nele haveria a previsão de confisco. Aqui se trata de dois equívocos elementares: 1. o IPTU progressivo fala em “desapropriação” e não em “confisco”, isto é, há pagamento pelos imóveis desapropriados. É simplesmente embaraçoso que a assessoria do vereador permita a existência de uma gafe dessa dimensão. 2. Se — e apenas se — houvesse inconstitucionalidade, é evidente que não caberia à Câmara Municipal de Joinville discuti-la e corrigi-la, mas sim a Câmara Federal. Trata-se de uma questão de mérito evidente.
O projeto ainda tenta realizar uma fundamentação filosófica totalmente repreensível, na medida que se vale de todos os clichês da literatura que circula em torno dos liberais e conservadores (Burke, Locke, Adam Smith e Scruton). De fato, Locke e Adam Smith são filósofos de primeira grandeza; Scruton é indigno de menção e Burke é um problema à parte. A menção a Adam Smith, contudo, é interessante. A fundamentação da contrariedade ao IPTU progressivo passa por negar toda e qualquer intervenção do Estado na economia, amparando-se na ideia smithiana da “mão invisível”, presente na lei apenas como slogan superficial. Seria possível argumentar que a economia alterou-se muito nos quase 250 anos que nos separam da Riqueza das Nações. Porém, porque não dobrarmos a aposta e sermos mais smithianos que o incauto vereador? Próximo ao final do livro, Adam Smith argumenta em torno da necessidade de um governo, tanto mais necessário porque “Onde quer que haja grande propriedade, há grande desigualdade. Para cada pessoa muito rica deve haver no mínimo quinhentos pobres, e a riqueza de poucos supõe a indigência de muitos”. Esse tipo de raciocínio embasa a importância do governo em Adam Smith. No entanto, saber disso exige o mínimo de compromisso com a estrutura lógica do pensamento de Smith e não o apego a jargões.
Por fim, o projeto ainda se volta a vários momentos de legitimação da ideia de propriedade. Entre as várias menções do projeto, há a menção da Declaração da Virgínia de 1776, de fato, em muitos aspectos, uma declaração relevante. Contudo, fundamentar a ideia de propriedade nessa declaração é de uma postura vil, abjeta e mesmo escandalosa: a declaração foi elaborada por proprietários de escravos que buscavam salvaguardar seus direitos. O conhecedor mais superficial da história americana sabe que a libertação das pessoas escravizadas foi ocorrer por todo o país apenas mais de 80 depois — aliás, foi necessária uma guerra justamente contra o direito à propriedade de pessoas. Por qual razão o vereador vai tão longe para fundamentar sua recusa ao IPTU progressivo? Por que se pautar naquilo de mais odioso que o pensamento político ocidental produziu, isto é, na legitimação da escravidão?
Isso apenas o vereador seria capaz de responder. O que é certo, todavia, é que nenhum vereador que seja portador do mais elementar pudor, isto é, que tenha vergonha na cara, deve assinar embaixo de um projeto de revogação tão movido pela alucinação e politicamente deplorável.
Referências
Os números de lotes baldios e terrenos com menos de 10% de aproveitamento estão presentes na minuta que deu origem à lei do IPTU progressivo. Já o número de domicílios vazios encontra-se nos números do censo de 2010 do IBGE. O número de famílias na fila da habitação está na coluna do Saavedra de 25 de março de 2021. A citação de Adam Smith está na página 164 do volume II de A Riqueza das Nações (tradução de João Luís Baraúna, edição da coleção “Os Economistas”). Para a interpretação da declaração da Virgínia, o livro Contra-História do Liberalismo de Domenico Losurdo é uma referência importante.