Técnico — o que há de técnico na proposta de revogação do IPTU progressivo?

Observatório Urbano de Joinville
8 min readJan 14, 2022

Por Ermínio Harvey, Arquiteto e Urbanista

Em texto recente publicado neste site, o Professor Paulo fez uma análise sobre as manobras e questões políticas que envolvem a tramitação e o adiamento da votação do projeto de revogação do IPTU progressivo em Joinville. Julgamos pelas justificativas (ou falta delas) que o projeto é inteiramente político e ideologizado, porém ele finge estar embasado em argumentos técnicos, que serão expostos e debatidos aqui.

Por vezes ouvimos no debate público a “cartada” de que um argumento é técnico, tentando passar a imagem de que estaria livre de ideologias ou até mesmo de questionamentos mais básicos. Pois bem, reconhecemos a importância de políticas públicas serem orientadas pela parte técnica. É valoroso se pautar em dados, literatura e exemplos, porém isso não é o fim em si mesmo, mas sim um meio de se atingir objetivos. O fim deve ser os benefícios à população, a quem ele serve, e não para grupos minoritários.

Para o debate, trouxemos a ideia central de argumentos utilizados para revogar a lei em questão que foram utilizados tanto na audiência pública como também nas comissões especiais. Faremos aqui um sumário deles:

Privilégios — Vamos começar concordando, ainda que parcialmente. De fato, parte dos bairros América, Atiradores e Glória estão fora do IPTU progressivo. Concordamos que além de serem áreas centrais, e com baixíssima densidade, deveriam ser o foco do instrumento, como de fato descreve a lei. Esta é uma aberração urbanística que produz, na prática, diversos dos efeitos negativos que pretendemos aqui combater. E vamos além, em vista de um debate futuro: não é o único instrumento urbanístico de desenvolvimento que a região fica injustamente de fora. Inclusive isso expõe o poder da especulação imobiliária em criar tais bolhas de proteção. A questão é que não há qualquer intenção por parte dos vereadores que se valeram deste argumento de resolver este privilégio. Pelo contrário, ao se dissolver o IPTU progressivo, o privilégio em questão se mantém intocado, com o agravante de não mais atuar contra a especulação nas demais áreas em que seriam de interesse público.

Densidade — Sim, bairros como o Comasa, Jardim Iririú, Fátima, e muitos outros da periferia de Joinville são de fato os mais densos, e o processo de verticalização não significa uma grande densidade necessariamente. Ponto pros vereadores. Porém mais uma vez se utilizam de meias verdades e ignoram o cerne das questões. Embora defendamos instrumentos que promovam uma maior densidade, possuímos total consciência de que não é qualquer modelo que produzirá uma cidade saudável. É uma discussão bastante complexa, profunda e delicada, que envolveria muitos outros instrumentos para promoção de um desenvolvimento saudável. Porém, embora os bairros periféricos tenham uma densidade maior que os da região central, não significa necessariamente que é um modelo de ocupação suficiente. E, finalmente, os bairros periféricos de Joinville são mais densos justamente pelo intenso e contínuo controle das terras nas áreas do cordão central para especulação imobiliária. Esta lei em vigor foi uma das raras investidas contra.

Tome-se como exemplo o Comasa, o bairro mais denso de Joinville, possui 7.981 habitantes por km quadrados. Já o Centro possui 4.176 hab/km² (segundo Joinville bairro à bairro 2017). Durante a aprovação do projeto em vigor, o ex-secretário de desenvolvimento, Danilo Conti, contou ao jornal NDmais que almejava atingir em Joinville uma densidade de 20 mil hab/km².

É importante ressaltar que a lei que estamos defendendo está longe de produzir a densidade de uma cidade chinesa ou indiana. Existe uma diferença colossal entre os modelos. Mumbai possui bairros com mais de 300 mil hab/km² e Hong Kong possui regiões com mais de um milhão de pessoas morando no mesmo quilômetro quadrado. Os 20 mil hab/km² almejados pelo município ainda estão bastante abaixo do bairro Eixample de Barcelona, tido como um planejamento bastante relevante do século 19, que possui hoje uma densidade de 35 mil hab/km² e inferior também as recomendações da ONU, que ficam entre 45 à 68 mil hab/km². Acima disso, possuem ressalvas e existe um “teto” para qualidade de vida que os bairros chineses e indianos ultrapassam — e muito.

Figura comparativa entre densidades, excluindo exemplos acima do recomendado

Há muitos ítens para se discutir sobre densidade, mas querer trazer como exemplo de ocupação os menos de 8 mil hab/km² do Comasa para inviabilizar um projeto que teria potencial para atuar no grande vazio demográfico urbano da área central é no mínimo incoerente para uma cidade do porte de Joinville.

Bairro Eixample, Barcelona.

Imposto regressivo em Curitiba — Foi argumentado que Curitiba teria além do IPTU progressivo, um IPTU regressivo e que deveria ser esta a melhor forma de se promover o desenvolvimento: desonerando quem promove o desenvolvimento em conformidade com o planejado. Pois bem, primeiro gostaríamos de admitir e questionar que não encontramos o projeto em questão, ao menos não como é mencionado. O que encontramos foram reduções do IPTU sob circunstâncias bem específicas (imóvel tombado, pessoa idosa, etc) e outra lei sobre isenções fiscais limitadas por período em caso de projeto de desenvolvimento para implantação de atividades econômicas específicas. Estar em condição regular no terreno é somente uma condicionante/obrigação para participar. Mas enfim, ainda que exista isso não inviabiliza a questão central: mesmo uma cidade que foi construída sobre um rigor urbanístico muito maior, com robustos planos de desenvolvimento urbano desde 1943, criando seu instituto próprio de pesquisa em 1965 (em Joinville o IPPUJ nasceu em 1991 e morreu em 2017) e sempre com diversos planos diretores modelos e soluções de mobilidade reconhecidas internacionalmente, etc etc… mesmo esta cidade continua aplicando o IPTU Progressivo. De que forma este exemplo, que trouxe somente um recorte específico de Curitiba, seria justificável para a revogação do nosso?

Desapropriação — Tema inclusive de emenda, foi levantada a hipótese de retirar o item que prevê a desapropriação do imóvel após se esgotar todos os prazos para apresentar projeto e os 5 anos da alíquota máxima de imposto incidindo sobre o imóvel. O argumento central é de que o município já possui meios de expropriar um imóvel caso não esteja cumprindo sua função social.

Questionamos o seguinte: quantos imóveis foram desapropriados sob estas circunstâncias desde a regulamentação desta lei? Por acaso não existem imóveis que infringem este critério no centro? Não há ninguém nas filas por moradia em Joinville? Todos nós conhecemos as respostas destas perguntas, mas insistimos em mais um argumento: retirar o instrumento de desapropriação da lei reduz quase que completamente o seu sucesso e pode provocar um efeito contrário. A pessoa que está mantendo seu imóvel valorizando no tempo não está tão preocupada com o imposto. Aqui não estamos falando do hipotético “Seu Zé da Mercearia”, que, como já explicado, a lei possui inúmeras isenções para não atingir o pequeno proprietário. Trata-se,sim, do grande proprietário, que sem a obrigação real de edificar ou de perder o imóvel irá simplesmente englobar o imposto no valor do seu imóvel, mantendo-o vazio, tornando a região ainda mais inacessível e cada dia mais com menos atividades e pessoas. Uma região morta, um perigo para os pedestres, mesmo custando um dos metros quadrados mais caros da cidade.

A necessidade de um IPTU progressivo é, em sua essência, uma correção de alguma distorção urbanística anterior. São diversos os meios que poderiam promover o adensamento em determinadas regiões, porém mesmo cidades conhecidas pelo planejamento urbanístico de longo prazo, com índices de densidade e mobilidade expressivamente superiores ao nosso, aplicam o seu IPTU progressivo, inclusive com o artigo da desapropriação. E insistimos que sem este artigo o próprio objetivo desta medida corretiva perde a sua força e consequentemente função, com o risco de ser contraproducente, acentuando o valor dos imóveis da região.

Contra o aumento de impostos — pois bem, nós também somos! E é exatamente por isto que defendemos o IPTU Progressivo e vamos explicar, mais uma vez, qual a lógica por detrás dele. O primeiro ponto é que o objetivo da lei não é a arrecadação, mas sim resolver um problema no desenvolvimento da nossa cidade que tem encarecido o seu custo de operação, entre outras penalizações sociais. É uma conta relativamente simples: quanto menor a densidade populacional de uma cidade, maior é o custo de infraestrutura por habitante. E Joinville já é uma cidade bastante extensa territorialmente e pouco densa, portanto, caso se queira de fato pensar em reduzir os impostos, é sensato buscar mecanismos para se estimular um uso adequado em regiões onde já possuem infraestrutura, de forma que a pressão por novos equipamentos e infraestrutura diminua e fique concentrada onde já possuem.

Toda esta argumentação já desmonta bastante esta suposta preocupação em desonerar o cidadão de impostos, mas vale trazer um caso curioso para pensarmos além: a base governista, a mesma que defende a revogação do IPTU Progressivo e que se elegeu sob o discurso contra imposto, aprovou o projeto do seu partido que aumentou — em ano de pandemia — mais de 10% sobre o IPTU comum para toda a população. Mas calma, apesar de parecer que há uma contradição entre discurso e prática aqui, é preciso não perder de vista a filosofia que rege o pensamento liberal. Quando um imposto incide de maneira igual a todos, porém as condições para quitá-los são verticalmente desiguais, afetando proporcionalmente muito mais o pobre e a classe média, como acontece no Brasil, o imposto já é chamado de imposto regressivo (encontramos o tal do imposto regressivo almejado). Então de fato há uma coerência enorme no partido. Não era sobre ser contra o aumento de impostos de uma forma geral:.é ser contra o aumento de impostos para um grupo bem específico. Estamos de olho.

Fechamos com os seguintes questionamentos: será que é Joinville, a Joinville de hoje, com o centro se deteriorando, tomado por vazios urbanos, pela insegurança, pela decrescente circulação de pessoas, que teria o seu modelo de exemplo para exportar para as demais cidades? Deveríamos então pegar nossos dados e ir apresentar nas demais cidades? Será que algum vereador acredita nisso?

Reforçamos o que já expomos algumas vezes: achamos a lei, tal como montada hoje, bastante tímida, mas nós queremos discutir, avançar e sanar os problemas expostos e não se valer de meias verdades para a sua revogação completa, onde além de não obter solução, se manteriam privilégios que claramente prejudicam o desenvolvimento e oneram as pessoas desta cidade. Consultem a parte técnica, tornem os dados das pesquisas que fizeram públicos (completos), ouçam a sociedade civil, que na data da audiência se manifestou majoritariamente contra, convidem-nos para conversar e vamos avançar na melhoria da lei. Contudo, a eventual aprovação deste retrocesso, da forma como está sendo conduzida, é principalmente uma derrota para o município e para a política de Joinville.

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