Ocupações urbanas e política: o caso Tebaldi
Este escrito conclui uma pequena série de textos (a parte I pode ser lida aqui e a parte II aqui) que buscará sublinhar os variados aspectos da especulação imobiliária em Joinville.
Por Paulo de Oliveira, professor de filosofia

O livro Projeto Mangue do ex-prefeito de Joinville Marco Tebaldi é um achado na literatura política a respeito da cidade. Com essa afirmação não quero prestar qualquer homenagem ou me dedicar à apologia ao livro — é um segredo de polichinelo que há quem receba dinheiro para fazê-lo. No entanto, é devido que se reconheça as inúmeras questões que o livro suscita, as informações que são dispostas ao público e, mais que um maçante relatório técnico a respeito de um projeto governamental, a interessante autobiografia política que se desenha durante a leitura.
Preciso mais o apontamento acima: na minha avaliação o livro é composto de erros, interpretações injustificáveis e avaliações seletas a respeito da figura de Tebaldi que não vão muito além de marketing pessoal de péssimo gosto. Disso, porém, não se segue que os erros não sejam produtivos, que as interpretações não sejam reveladoras de um ponto de vista de classe em especial e que as afirmações sobre Marco Tebaldi não ressaltem um aspecto verdadeiro da sua imagem política construída em pelo menos duas décadas e meia de vida política.
Essa é inclusive a primeira informação valiosa que a conclusão da leitura do livro fornece. Ao observador desatento, Tebaldi pode parecer um mero técnico, cuja carreira política está ligada de modo eventual a sua capacitação enquanto Engenheiro Sanitarista e que resulta mais de uma articulação política exitosa e casual que o levou à vice-prefeitura que a virtudes políticas próprias. Em resumo, Tebaldi era o homem, sem qualidades, no lugar certo e na hora certa, não muito mais que isso.
Definitivamente é necessário refutar a ideia acima e reconhecer que Tebaldi é detentor de uma carreira política sólida, cujos méritos se devem antes de tudo a uma visão política de largo alcance, e cuja gestação se deu nas periferias da cidade durante cerca de dez anos (mal periodizando, aproximadamente de 1986 a 1996). Com isso não se pretende negar a parte devida à fortuna — para ficarmos com a tipologia clássica de Maquiavel –, mas sim medir adequadamente a virtú, a prudência, a estratégia e a capacidade do político Tebaldi.
Uma digressão é necessária a fim de posicionar Tebaldi no cenário político, não apenas como mais um representante da burguesia nativa, mas como portador de alguma diferença significativa que permitiu um alargamento de horizontes da elite municipal. É razoavelmente conhecida a afirmação de outro ex-prefeito ilustre, Wittch Freitag, segundo a qual se formava uma sub-raça nas ocupações do mangue de Joinville (jornal Extra, 28/04/1984) — afirmação já presente no livro politicamente retrógrado do ambientalista Gert Fischer, Mangues: Conseguiremos conservá-los? (1983, p. 18). É necessário começar por aqui, pois o juízo de Freitag se refere à pessoas e ao ambiente ao qual Tebaldi esteve ligado no início de sua carreira. Não irei discutir a motivação do ex-prefeito, mas notar apenas que talvez seja possível sintetizar a percepção política fundamental de Tebaldi em uma afirmação contrária a dele — em que pese as relações entre ambos. Trata-se antes de conceber a formação de uma subpopulação no mangue, mas a partir da percepção de um espaço político recém aberto. Desprezá-la, é nisso que consiste o erro fundamental, ao qual Tebaldi preveniu-se. Ao invés de desclassificá-la, negá-la, criminalizá-la, devia-se incorporá-la ao discurso político, trazê-la a tona, legitimá-la, em certo sentido.
É por meio dessa intuição fundamental que o Projeto Mangue, capitaneado pelo Núcleo de Bacias Hidrográficas (NBH) da Prefeitura de Joinville, por sua vez coordenado por Marco Tebaldi, iria ganhar corpo. O projeto consistia na criação de um canal artificial (de quarenta metros de distância entre ponta a ponta e cinco de profundidade) isolando a parte ocupada do mangue de sua parte ainda “virgem”. Além disso, o projeto previa a urbanização das áreas de mangue somada a medidas de assistência social.

Os números apresentados por Tebaldi, mesmo supondo-os inflados, são impressionantes quanto ao êxito do Projeto Mangue: 95% da área original de mangue conservada, cerca de 10 mil títulos de propriedade entregues, centenas de ruas pavimentadas, algo próximo de 50 mil pessoas diretamente atendidas beneficiadas. Isso tudo em dez anos de projeto, 90% financiado a fundo perdido pelo BNDES. Eis o resultado. Todavia, não devemos nos fiar apenas no resultado. A verdade, já dizia um ultrapassado filósofo alemão citado no livro em um fac-símile de um artigo de Antonio Neves como “Hengels” (sic!, p. 31), é o todo, e portanto cabe analisar também o processo, e não apenas o resultado.

E é no processo que se encontra o Tebaldi político, e não apenas o técnico que apresenta resultados a serem apropriados por alguma gestão municipal a qual serviu. Foi nas periferias da cidade que o Estado, personificado pelo homem Tebaldi, na antiqüíssima forma do patrimonialismo — na consagrada fórmula de Sérgio Buarque de Hollanda: a indistinção entre o público e o privado, a carência de impessoalidade no serviço público –, fez-se presente e foi a tônica do período.
O livro é abundante de informações a respeito da construção dessa carreira que viu nos sub-abrigados uma fração de classe em potencial ascensão. Por exemplo, nas páginas 41 e 48 há fotos do coordenador do projeto na “linha de frente” de sua consecução. O testemunho de um anônimo — seleto, como tudo no livro, é claro — é esclarecedor a esse respeito: “Tebaldi? Simples, o homem mais simples que vi até hoje. Era um batalhador, chegava com um fuquezinho velho da prefeitura, ia lá em casa tomar um café, lá se juntava a gente e ia para o mangue. Ele chegava cedo e ia embora tarde, comia por lá mesmo, tomava café lá dentro do mangue” (p. 178).
Não se trata apenas do marketing político mencionado acima. Trata-se também e talvez mais fundamentalmente da construção política de um técnico financiado pelo Estado para percorrer as ocupações irregulares sobre o mangue durante dez anos, constituindo uma referência incontornável para os moradores que sonhavam com suas casas. Um homem cuja influência é difícil de mensurar, e cujo conhecimento de engenharia social e do aparato estatal potencializou sua imagem política.
Quanto à aliança que viria a cimentar a parceria entre Tebaldi e o mangue, vale mencionar que um dos critérios para a urbanização de uma comunidade era a formação de uma associação de moradores. Segundo Tebaldi, sessenta associações de moradores foram formadas em função do projeto (p. 68). Essas associações formadas, em sua maioria, com a tutela do Estado, sob influência direta do NBH. Enunciado assim, parece apenas uma falsa polêmica tentar amputar uma cooptação vertebral entre Estado, Tebaldi e Associações. É legítima a questão: qual a qualidade e o sentido dessas associações formadas em torno do Projeto Mangue?
A penúltima parte do livro é um conjunto de três depoimentos acerca do Projeto Mangue e a respeito de Tebaldi. Uma líder comunitária fornece indicações sobre o papel das associações no contexto do Projeto: “O trabalho mais importante da associação era relocar as casas que estavam fora do terreno que lhes cabia. O pessoal da prefeitura vinha com macaco, caibros e calços e o trabalho ia sendo feito (…)” (p. 121). Portanto, associações e prefeitura cooperavam. E até que ponto ia essa cooperação? Tebaldi nos explica com outro exemplo. O contexto é, após a demarcação dos lotes, a possibilidade de novas ocupações e o que fazer para impedi-las: “Nesse momento, o que falou mais alto foi a ação das associações de moradores, que fizeram uma verdadeira faxina. Os mal-intencionados foram afastados. As associações designaram forças-tarefas para fiscalizar a área 24 horas por dia, com a ajuda de uma viatura da Política Militar” (p. 20). Há aqui duas relações que, mesmo beirando a obviedade, devem ser feitas. A primeira diz respeito a idéia de vigilância, consagrada na literatura por Michel Foucault. A ênfase de Foucault foi sempre na perspectiva de superar as abordagens estatais do poder disciplinar e se trata, nesse caso, por um lado, justamente disso. O Estado ampara, é claro, mas quem vigia são os próprios ocupantes. O segundo ponto é a implosão da sempre precária distinção entre Estado e Sociedade Civil. Há somente uma diferença formal entre ambos, o que ocorre é que o Estado, para além dos meios coercitivos tradicionais, exerce hegemonia sobre a sociedade. Nesse caso limite, as pessoas vigiam, ocupam um papel frequentemente operado pelo Estado e o fazem sem remuneração. Gramsci foi quem notou esse fenômeno. Restaria ainda a questão: se as pessoas vigiam, vigiam para quê e para quem? A hegemonia é do Estado no fim das contas? Deixemos, por ora, em aberto.
Esse é apenas um aspecto do processo que veio a resultar Tebaldi, o qual poderíamos chamar, emprestando o termo de um subtítulo de seu livro, “engenharia social”. Nada que vá além de uma forma sofisticada do patrimonialismo local e técnicas de vigilância e organização. Outra parte disso reside na articulação que permitiu o financiamento do Projeto com o BNDES — agradecimento especial, à página 42, ao então deputado Luiz Henrique da Silveira — e que lhe permitiu antecipar alguns movimentos do Estado e utiliza-lo com uma precisão otimizada: “Outro segredo do projeto foi o seguinte: nós sabíamos que tínhamos condições de começar a rua dali a uma semana, mas anunciávamos para duas ou três semanas mais tarde; então, quando começávamos a obra, estávamos sempre adiantados em relação ao cronograma prometido” (pp. 65–66). A astúcia, como Tebaldi faz notar, é uma qualidade política que preza.
Essa astúcia que permitiu também diagnósticos realistas a respeito de problemas concretos. O pragmatismo de sua resposta ao problema das remoções forçadas é ilustrativa: “O que fazer? A remoção forçada era uma operação complexa, desgastante e perigosa, de conseqüências imprevisíveis e, mesmo tendo êxito, como é que se cuidaria das áreas livres? Como impedir que fossem reocupadas da noite para o dia?”. Não há princípio que regule esse raciocínio. A solução, como já visto, era a permanência e a integração dos ocupantes a uma estrutura informal do próprio Estado, vigiando quanto a novas ocupações.
A face “comunitária” de Tebaldi vale mais uma nota. À página 70 aparece o ex-prefeito em uma foto em trajes de jogador de futebol, em vista de um jogo com os ocupantes. Na página 115 há um fac-símile a respeito da urbanização da Vila Paranaense o qual diz em certa altura: “Primeira área urbanizada do ‘Projeto Mangue’, a Vila conta agora com um campo de futebol construído em regime de mutirão, medindo 60 x 90 metros. A inauguração ocorreu recentemente com um torneio de futebol, masculino e feminino. O estádio foi denominado Marco Antônio Tebaldi”. Impossível não ver o germe do projeto megalomaníaco que viria a resultar no “Tebaldão” sendo gestado em uma periferia esquecida de Joinville.

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Parece-me evidente que Tebaldi foi além da percepção comum de sua classe. Não muito além, mas ainda assim teve intuições mais promissoras que seus concorrentes naturais. A sua carreira política está enraizada nas ocupações, de cuja urbanização foi o agente mais proeminente para aqueles que lá moravam.
A contraparte desse processo está descrita em termos gerais na monografia A institucionalização da ocupação das áreas de mangue em Joinville de Valdete Niehues. Ela mostra como a esquerda política da cidade construía um projeto alternativo a partir da organização dos explorados. Projeto abortado pela ação preventiva do Estado, personificado pelo primeiro secretário de Habitação de Joinville.
Parece uma lei de ferro da história que as elites se renovem por meio de certo compromisso com as demandas populares. Para insistir nas idéias do comunista sardo, a ação de Tebaldi se processou como uma revolução passiva, de cima, preventiva, acoplando reivindicações populares a um novo fôlego de uma elite preocupada com as movimentações dos de baixo nas bordas da cidade. Na outra ponta, resolveu ainda o problema dessa mesma elite e sua obsessão em dizer que Joinville é isenta de favelas — mentira que depois de mil vezes contada tornou- se verdade.
É notável, desse modo, um episódio omitido por Tebaldi e presente no relato de Valdete. Tebaldi foi indiciado por volta de 1993 em razão da demolição de uma casa sem autorização do judiciário (violação de domicílio, danos ao patrimônio alheio e abuso de autoridade). Na época já secretário de habitação, Tebaldi foi à Câmara de Vereadores para explicar o ocorrido. Valdete descreve assim o evento: “No dia do pronunciamento explicativo na câmara municipal, centenas de moradores das áreas de mangue foram prestar apoio a Tebaldi, ostentando faixas e cartazes, manifestavam-se solidários às suas ações, repudiando a possibilidade da perda da função pública alegando que ‘nós precisamos de você’” (p. 34).
A defesa popular de Tebaldi é o peculiar. É notório, e o célebre artigo do ex- presidente FHC “O papel da Oposição” (Revista Interesse Nacional, 2011) demonstra com perfeição, que a relação entre PDSB (então partido de Tebaldi) e “povão” foi, é, e provavelmente sempre será precária. Fernando Henrique Cardoso argumentou que “Enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influência sobre os ‘movimentos sociais’ ou o ‘povão’, isto é, sobre as massas carentes e pouco informadas, falarão sozinhos”. É por aí, bem formulado, que Tebaldi se destaca frente aqueles que se obstinam com preconceitos a respeito da massa popular.
Isso não impede, entretanto, em seu livro de frequentemente oscilar a respeito da opinião dos moradores dos mangues. Do reconhecimento da necessidade de ocupação dos migrantes (p. 30), a consideração deles enquanto manipulados por políticos clientelistas (p. 16) que em seu meio contavam com profissionais das invasões (p. 67). De desqualificados profissionais que pouco tinham a ver com a indústria (p. 59), cita dados que mostram, segundo levantamento de 1986, que 43,7% se encontravam ocupados na indústria (p. 44). Critica o PT por atrapalhar o processo de regularização (p. 66), mas cita dados que mostram que as ocupações eram motivadas por interesses políticos em apenas 0,3% dos casos (atrás das imobiliárias, com 1,3%, as quais não é endereçada crítica alguma).
Tebaldi conseguiu superar o preconceito contra os pobres que caracteriza a os setores burgueses mais conservadores, cuja afirmação de Freitag citada acima é um exemplo, e teve êxito em articular um projeto de poder, cuja extensão ainda é indefinida. No entanto, a perspectiva de Tebaldi se conforma ainda nos estreitos limites da burguesia.
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A Crítica à Razão Dualista (original de 1973, Boitempo, 2003) de Francisco de Oliveira é um ensaio notável por vários aspectos. A multiplicidade de temas presentes no livro é razoável, mas gostaria apenas atenção de um, que, parece-me, joga luz no problema da moradia. O problema da acumulação é uma das questões mais fundamentais talvez de toda a teoria econômica. No Brasil essa questão motivou inúmeras polêmicas e a discussão é absolutamente rica e estimulante. Talvez seja um pouco arriscado dizer, mas resta a impressão de que no debate sobre a economia joinvilense o tratamento adequado dessa questão pode resolver alguns problemas. Parece-me, ainda, que ela é ponto fulcral onde se decide por uma versão apologética do desenvolvimento da economia joinvilense — na qual o papel dos “grandes homens” supera tudo o mais — ou por uma variante crítica, por meio da noção de exploração. Uma versão interessante do problema da acumulação se encontra na Crítica. É-me impossível trata-la no detalhe, de modo que só serão possíveis indicações muito parciais.
Para Francisco de Oliveira, a acumulação primitiva ocorre de modo “estrutural” e não meramente “genético”. Ao contrário, por exemplo, da exposição do O Capital de Marx, na qual a acumulação primitiva expropria a propriedade dos camponeses a fim de criar a massa necessária para a reprodução “normal” do capital em um dado momento e em um dado local, Oliveira propõe uma acumulação por meio da expropriação do “excedente” e cuja vigência é permanente e constitutiva do capitalismo subdesenvolvido. No campo os fenômenos que sugerem essa tese são vários. Por exemplo, o trabalhador que expande a fronteira e a dispõe em seguida ao capitalista, agora como trabalho morto; desse modo o trabalhador desmata, ocupa a terra, monta a lavoura de subsistência e em seguida a cede para o proprietário, de modo que o trabalho anterior de preparação da terra é o trabalho expropriado. Esse tipo de relação, segundo Oliveira, foi importante para que os gêneros alimentícios das áreas de ocupação recente nas quais esse trabalho morto foi expropriado, na virada da economia de base agrária para a industrial (formalmente, a indústria supera o PIB da agricultura em 1956), funcionem para que o setor urbano possa acumular. Em outras palavras, o baixo valor da alimentação proporcionado pela expropriação do trabalho permite um menor salário, que é funcional à reprodução da força de trabalho na indústria. A resposta de Oliveira — expondo-a de modo extremamente simplificado — à questão da expansão industrial ocorrida no período mencionado diz respeito a uma incorporação da exploração selvagem ocorrida no campo, que serve então de suporte para a diminuição da remuneração do trabalho industrial. Quanto menor preço da alimentação, menor será o salário; quanto o menor preço da força de trabalho maior será a senda da acumulação.
No entanto, o expediente da acumulação não se dá puramente na exploração do campo para a manutenção de taxas maiores de exploração na cidade. Na própria cidade o problema da moradia repõe o problema da acumulação por via de trabalho expropriado. Aqui chegamos propriamente ao ponto que interessa ressaltar e que mostra o quão estrutural é essa acumulação, que procede não apenas na exploração do trabalho na fábrica, mas sim expropria mais porque produz espaço. Se a relação entre a exploração na fábrica se mede por meio do tempo, fora dela, na cidade, é constatada pelo espaço.
Se trata, ainda, claro, de exploração do trabalho, mas que deixa marcas fora da fábrica, expandindo concretamente a luta de classes (em certo sentido, a luta pelo espaço) na cidade. Oliveira caracteriza do seguinte modo essa forma da acumulação:
“… mesmo uma certa fração da acumulação urbana, durante o longo período de liquidação da economia pré-anos 1930, revela formas do que se poderia chamar, audazmente, de ‘acumulação primitiva’. Uma não-insignificante porcentagem das residências das classes trabalhadores foi construída pelos próprios proprietários, utilizando dias de folga, fins de semana e formas de cooperação como o ‘mutirão’. Ora, a habitação, bem resultante dessa operação, se produz por trabalho não pago, isto é, super-trabalho. Embora aparentemente esse bem não seja desapropriado pelo setor privado da produção, ele contribui para aumentar a taxa de exploração da força de trabalho, pois seu resultado — a casa — reflete-se numa baixa aparente do custo de reprodução da força de trabalho — de que os gastos com habitação são um componente importante — e para deprimir os salários reais pagos pelas empresas. Assim, uma operação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticas de ‘economia natural’ dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho” (p. 59).
A casa possui uma funcionalidade no todo social. Sua construção, sobretudo quando por “super-trabalho”, implica na compressão dos salários e, por conseguinte, no aumento da taxa de acumulação. Um importante componente da partida da industrialização, dirá Oliveira logo adiante (pp. 66–67), foi o fim das vilas operárias, pois sua existência significava a oneração direta do capital industrial com o “custo moradia”. Findando, o operário é jogado ao léu, morará mal, mas os imperativos da acumulação podem se processar mais livremente.
Isso quanto a casa. Quanto ao terreno, que também é um custo habitacional, ocorre o mesmo processo. No entanto, aqui entra a peculiaridade geográfica de Joinville. Num caso como São Paulo, a periferização obedeceu ainda uma lógica dos capitais imobiliários (que incorporavam partes do salário), mas em Joinville não. As ocupações nas terras de marinha, de um certo modo, davam as costas para o capital imobiliário. Não só o mutirão dribla o custo habitacional, o terreno, na verdade, ocupa função mais importante ainda e o caso de Joinville é uma potência elevada nesse sentido: nem casa nem terreno passaram a ser um custo a ser suprido pelo salário. Outra conseqüência foi a criação de periferias com pior qualidade, porque sujeitas de modo mais urgente ainda à intempéries próprias do mangue. Se o capital imobiliário — quando ele próprio não loteava o mangue, é evidente — foi “negado” pelas ocupações, o capital industrial encontrou a sua contraparte perfeita no capítulo local do arrocho salarial.
Para constar: a vantagem da visão proposta por Francisco de Oliveira é que ao constatar o reino do mais “moderno” capitalismo e da mais crua e “atrasada” exploração — dos carros produzidos no Brasil que proporcionam um mercado informal de lavadores de vidros nos semáforos, a produção industrializada comercializada por ambulantes etc. — não se constata, tal como na visão da CEPAL e outros economistas, nenhum dualismo: é a unidade profunda e subjacente que é apanhada pelo pensamento para além da constatação fácil das multiplicidades evidentes.
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Tebaldi se conforma aos estreitos limites da visão de mundo burguesa da sociedade porque sua situação material o impede de reconhecer que é o próprio modelo de crescimento econômico que produz as ocupações de terra, que elas não são desvios, falhas, erros, descaminhos, mas sim a conseqüência necessária desse modelo; que há portanto uma relação íntima e definitiva entre indústria e ocupações. Esse incapacidade não decorre porque Tebaldi não disponha de extenso conhecimento factual e material empírico em forma de dados. Mas simplesmente porque ao se deparar com essa relação não pode dar um passo além, um passo que somente quem não está comprometido com a manutenção do todo social pode dar.
Quando trata disso uma oscilação sintomática de uma miopia profunda. Uma das primeiras seções do livro serve para explicar, afinal de contas, porquê ocorrem ocupações: “Num dos períodos de maior crescimento econômico e populacional do país, durante o chamado ‘Milagre Econômico Brasileiro’ nos anos 70, o município de Joinville, maior pólo econômico de Santa Catarina, recebeu uma legião de migrantes em busca de trabalho na indústria e sofreu um dos piores transtornos urbanísticos de sua história” (p. 14). Aqui é enunciada a relação, de modo superficial, entre crescimento econômico e desvio urbanístico.
Páginas adiante resume a questão de outro modo: “A instabilidade econômica, desde os últimos anos da década de 70, empobreceu um contingente fabuloso da população brasileira (…)” (p. 23). Agora é sob o signo da instabilidade, e não do crescimento, que as ocupações serão explicadas, em referência a situação nacional. À frente, porém, ele próprio cita um dado que relativiza seu diagnóstico: “Mesmo com indicadores sociais insustentáveis, na década de 80 a economia de Joinville cresceu a uma taxa média de 6,4% ao ano, bem acima da média nacional, mas o ciclo desenvolvimentista com grande expansão de postos de trabalho em ‘chão de fábrica’ termina com os anos 80, quando o país é assolado por forte recessão e, de 1985 a 1994, pela escalada da inflação” (pp. 33–34). Mesmo a referência nacional não explica a instabilidade, pois o crescimento em Joinville permaneceu em níveis elevados.
O “milagre econômico” significou um crescimento à média de 8,8% na década de 70. Na década seguinte, o crescimento médio foi 2,9%. Joinville, à mesma época, cresceu a 6,4%. Tebaldi dispõe dos dados, mas só tangencia o problema. Ora reconhece o “milagre”, a estabilidade responsável pela migração, ora tributa no pífio crescimento da década o problema das ocupações, embora tenha de matizar seu próprio diagnóstico com o dado local. O mesmo resultado não pode advir de causas diferentes.
O ponto é que é difícil de pensar como Joinville pôde crescer a 6,4% em um contexto recessivo se não se operasse um certo expediente de acumulação selvagem. Uma parte da literatura econômica leva em conta o problema da terra como significativa nesse processo. No entanto mesmo livros que não são apologéticos referem-se a esse crescimento apenas tributando à disciplina do trabalho, aos “homens especiais”, à feminização do trabalho etc. Essas questões, sem serem falsas, não explicam a particularidade joinvilense. Para aumento do crescimento, vale ainda notar, que mesmo se as pessoas ligadas às ocupações só fossem em 43,7% (conforme dado acima) ligadas à indústria, mesmo assim elas constituíam um exército industrial de reserva amplo, barato e disponível.
Essa inconseqüência das conclusões de Tebaldi é originada na impossibilidade de dar um passo além e conceber a própria sociedade como contraditória. “O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz”, conforme os Manuscritos Econômico-Filosóficos de Marx, na expressão da fórmula, ainda abstrata, de que é a própria riqueza que produz a pobreza no capitalismo ou, então, em termos mais concretos, o crescimento econômico supõe a exploração.
O crescimento populacional em taxa média por volta de 6% ocorre desde a década de 60 (e não 70 como elide Tebaldi). A industrialização requisita força de trabalho, cuja origem pouco importa. As lamentações de Tebaldi em torno da desqualificação do trabalhador também são inconseqüentes: essa desqualificação é em larga medida interessante às empresas. A noção de exploração, a qual Tebaldi passa longe, é que é capaz de explicar as relações que se estabeleceram com a industrialização crescente.
Como ressaltado acima, em sua forma mais básica a exploração é a relação entre salário e trabalho, quanto menor esse maior a exploração. O salário, por sua vez, paga os custos de reprodução da força de trabalho (vestuário, alimentação, moradia). Ora, se é possível abater, suprimir, eliminar qualquer um desses custos é possível manter o salário mais baixo ainda, pois sua remuneração não contará com tal item, portanto o capitalista acumulará mais, por sua vez empregando mais capital em bens de capital fixo e, então, maior crescimento econômico.
No caso de Joinville, o item moradia foi completamente suprimido pelas ocupações de terras. A resolução do problema da moradia por meio das ocupações do mangue passou a ser funcional à industrialização. Não se trata de “transtorno urbanístico”, “instabilidade econômica” ou ainda de “escalada da inflação”. Certamente que, sobretudo esse último fator, teve um peso importante. No entanto, é o próprio crescimento econômico que necessitava para sua manutenção salários baixos que permitissem maior acumulação. É nisso que reside o problema de todos os apologetas que se referem ao “milagre econômico”: esquecem-se deliberadamente de dizer que o “milagre” foi extorquido à base da compressão dos salários. As greves de 1978 em diante devem ser vistas nesse registro.
Se fosse além e dissesse isso, Tebaldi estaria afirmando que é o próprio capitalismo que produz a contradição. Esse é o salto mortal que não pode executar. Portanto, restam aspectos mistificatórios na explicação do problema que contribuiu com a resolução. Resta um resíduo indeterminado e incontornável, que sua própria situação social o impede de ver.
*As fotos e imagens desse texto são todas retiradas do livro Projeto Mangue de Marco Tebaldi (Editora Letradágua, Joinville, 2008).