Especulação Imobiliária — teoria e prática*

Observatório Urbano de Joinville
4 min readMar 24, 2021

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* Este escrito faz parte de uma pequena série de textos que buscará sublinhar os variados aspectos da especulação imobiliária em Joinville. Pedimos a paciência do leitor: iniciaremos pelos aspectos mais teóricos a fim de se chegar aos exemplos mais concretos.

Por Paulo de Oliveira, professor de filosofia

A noção de especulação imobiliária está ligada à noção de especulum, que dá origem à palavra “espelho”. Digo se segue a ideia de “reflexão” e “projeção”: especular é projetar. O que é, então, especulação imobiliária? Especulação imobiliária diz respeito à projeção de valorização de certos imóveis (casas, terrenos ou mesmo regiões).

À título de exemplo se pense no seguinte: há um proprietário de um terreno em uma margem da cidade, em um bairro afastado do centro. Hoje o terreno vale x (ou, para ser menos abstrato, 50 mil reais). Porém, há a expectativa que dentro de um certo tempo ele valorize. O que faz o proprietário? Espera. Em, digamos, hipotéticos cinco anos, o terreno valerá 2x (ou 100 mil reais), então ele o venderá. Nesse caso, o proprietário especulou: ele projetou a valorização de um terreno (e projetou com êxito: talvez por algum incidente não houvesse a valorização desse local) e, então, se consumou o seu projeto imobiliário.

O exemplo acima, claro, é pueril: ele supõe um proprietário privado, mais ou menos desconectado dos demais proprietários — além disso, não há a explicação pela qual um terreno se valoriza (voltaremos a isso). Pense-se, porém, se a especulação é realizada não por um proprietário privado mais ou menos autônomo e insulado, mas sim por um grande proprietário de terras, com grande concentração de terrenos e alguma influência política. Nesse caso, o processo acima é exponenciado.

Além disso, a pergunta importante é: o que valoriza um terreno? No exemplo acima, parece ter sido o tempo que o valorizou, mas não se trata disso. O que valoriza um terreno são basicamente duas qualidades: i) o trabalho humano no entorno dele e ii) a expectativa de se conquistar lucros futuros. Em termos bastante específicos: um terreno no qual há água encanada à disposição, energia elétrica, asfalto e coleta de lixo (isto é, no qual trabalho humano na forma da disposição de serviços públicos já está presente) vale mais que um terreno rural no qual esses itens não estão à disposição. Um terreno no qual é permitido que se construa uma edificação de dois andares vale y; se for alterado a lei de ordenamento territorial e no mesmo local for permitida a construção de um prédio de 18 andares, ele valerá y + x. Com uma mera alteração legal a projeção de lucros se alterou (não houve aí a inclusão de mais trabalho humano), e assim o valor foi multiplicado em talvez cinco ou dez vezes.

Alguém, a essa altura do texto, talvez pudesse argumentar que o esquema aqui traçado é por demais teórico e abstrato. Façamos então uma alteração brusca para a história efetiva de Joinville. O historiador Dilney Cunha relembra que para a fundação da cidade (mais propriamente a disposição das terras que viriam a constituir Joinville à Sociedade Colonizadora de Hamburgo; vale sempre lembrar que povos de diferentes origens já habitavam essa região) concorreu decisivamente a falência de um ramo da família real francesa que por sua vez levou à colonização dessas terras. Segundo ele,

«O governo brasileiro pretendia substituir a mão-de-obra escrava pelo braço livre, povoar o território e “branquear” a população. Por isso passou a atrair imigrantes europeus, concedendo-lhes vantagens, como acesso fácil à propriedade da terra, isenção de impostos e do serviço militar e liberdade religiosa. Em maio de 1849 o senador hamburguês Christian Matthias Schroder, que possuía negócios no Brasil, e o príncipe de Joinville, François d’Orleans, filho do rei da França, e sua esposa, dona Francisca, irmã do imperador D. Pedro II, assinaram um contrato, mediante o qual o casal cedia 8 léguas quadradas, de um total de 25, do seu dote de casamento localizado na região de São Francisco do Sul. Ao contrário do que sustenta a história oficial, não houve nisso [na cessão de 8 léguas quadradas pelo príncipe Joinville] qualquer intenção altruística ou humanista no sentido de tirar os imigrantes da situação de miséria em que viviam, dar-lhes um novo lar e condições, meios para obterem uma vida digna, confortável. O príncipe e a princesa de Joinville haviam fugido da França após a queda da monarquia; a situação financeira do casal era desastrosa. Cedendo parte do dote, esperavam que as terras restantes valorizassem com a colonização da região, o que de fato acabou ocorrendo (de acordo com o contrato, o senador Schroder era obrigado a assentar na área, 1.500 pessoas nos 5 anos seguintes).»

Em outros termos, a família real cedeu algumas terras a fim de que se valorizassem as terras do entorno — se não em termos teóricos, é claro que se entendia que a presença de mais pessoas na região implicaria em mais atividade econômica, estradas, necessidades de consumo (enfim, tudo aquilo que decorre a partir da atividade de trabalho). Isto é: na própria origem da cidade está a especulação imobiliária, a projeção sobre lucros futuros ligados ao assentamento de novos grupos.

Obviamente até hoje a especulação imobiliária permanece na cidade e ganhou outras feições e dimensões. Os imensos terrenos vazios que constituem a paisagem urbana, as casas e mesmo prédios inteiros desocupados, o espraiamento da cidade o qual obriga os trabalhadores a se deslocarem longas distâncias porque periferizados — essas são, justamente, dimensões do fenômeno. Buscaremos explorá-las com mais cuidado. Contudo, isso é assunto para outro texto.

Algumas referências:

CUNHA, Dilney. “Mito e realidade sobre a gênese e o desenvolvimento da cidade” em Joinville Ontem e Hoje.

VILLAÇA, Flávio. O que todo cidadão precisa saber sobre habitação. São Paulo: Global, 1986

MARICATO, E. A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo, Alfa-Ômega, 1979.

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