Especulação imobiliária II

Observatório Urbano de Joinville
6 min readApr 19, 2021
  • Este escrito faz parte de uma pequena série de textos (a parte I pode ser lida aqui) que buscará sublinhar os variados aspectos da especulação imobiliária em Joinville. Pedimos a paciência do leitor: iniciaremos pelos aspectos mais teóricos a fim de se chegar aos exemplos mais concretos.

Por Paulo de Oliveira, professor de filosofia

Em texto anterior busquei delinear em traços gerais em que consiste a especulação imobiliária, isto é, na projeção de valorização de determinadas áreas. A ideia básica da especulação imobiliária, ou seja, da atividade economicamente orientada em vista da valorização da terra, não diz respeito a uma espera ou expectativa pela valorização de terras: ela diz respeito à implementação de variadas estratégias que consigam realmente produzir essa valorização. Como exemplo, lembrei que a própria fundação da cidade — a cessão de terras pelo príncipe Joinville à Sociedade Colonizadora de Hamburgo — se enquadra nesse artifício: cedendo as terras que compuseram o núcleo de Joinville, esperava-se valorizar as terras que as margeavam. Além disso, o controle político da cidade pode produzir com alguma facilidade especulação imobiliária: a mera alteração de permissão de construção, digamos, de um edifício de dois andares para um de dez andares já facultaria, apenas através de mecanismos burocráticos, a projeção de valorização. Daí que não seja raro ver uma cumplicidade estreita entre aqueles que dominam politicamente a cidade com aqueles que são os proprietários de terra.

Nos 170 anos de formação da cidade ocorreram diversos momentos nos quais a produção do espaço urbano se orientou segundo essa lógica. Não nos cabe retomar esses aspectos aqui em detalhe, o que apenas uma reconstrução histórica detalhada poderia fazer. Nesse ponto, é preciso mencionar, contudo, o trabalho seminal de Naum Alves Santana cujo título é A produção do espaço urbano e os loteamentos na cidade de Joinville (SC) — 1949–1996. A dinâmica da especulação inicialmente foi mitigada pela própria estrutura da Sociedade Colonizadora cujas obrigações contratuais implicavam na destinação rígida de terra aos colonos, de modo que um mercado imobiliário só seria formado na passagem do século XX. Contudo,

“Essa intervenção da Administração da Colônia inibiu, de certa forma, a atividade imobiliária especulativa, característica do mercado capitalista, pela disponibilidade de terra oferecida pela empresa colonizadora, em razão de compromissos contratuais de assentar certa quantidade de colonos em um tempo determinado. Entretanto apesar das condições precárias para a instalação de um verdadeiro mercado imobiliário, (FICKER, 1965) observa que, já na primeira fase da colonização algumas pessoas adquirem grande quantidade de lotes para especular no futuro, como é o caso de Bernardo Poschaan e Arthur Guiger, ambos latifundiários de café no Rio de Janeiro. Os dois empresários coordenaram um forte movimento para a transferência do centro urbano da região do porto — às margens do rio Cachoeira — para a região da Estrada Anaburgo, atual Bairro da Vila Nova” (p. 33).

Em outros termos, princípios de especulação imobiliária já se inscreviam nos primeiros anos da Colônia, ainda que provavelmente não fossem centrais em seu desenvolvimento econômico. Mesmo assim, é possível acompanhar Naum Santana e afirmar que “Pode-se até dizer que o empreendimento colonizador foi um grande loteamento através do qual a Sociedade Colonizadora vislumbrava auferir alguma renda” (p. 15).

Contudo, será a atividade industrial que remodelará decisivamente a paisagem urbana. A migração ocasionada tanto pela oferta de trabalho industrial (em um país que, vale lembrar, condiciona até hoje a cidadania com a posse de uma carteira de trabalho assinada) quanto pelo despovoamento do campo (estima-se, por exemplo, que a cultura da soja, altamente mecanizada, expulsou 70% dos camponeses do Paraná ao substituir o cultivo do café, cuja característica é a mão de obra extensiva) resultará em grandioso aumento populacional, em taxas bem superiores às nacionais. Segundo Naum Alves Santana,

“Um segundo momento se revela a partir do incremento do processo de industrialização da cidade de Joinville a partir dos anos 50, que resultou em um crescimento vertiginoso da população, que viria a se expressar na reorganização da cidade, pois essa nova população precisava ser assentada em algum lugar. Como desdobramento dessa pressão demográfica sobre a produção de novos espaços, dois outros processos se instalam. De um lado, intensificaram-se as ações do mercado imobiliário, que atento a esta nova demanda, passa a investir na produção de loteamentos residenciais, contribuindo para diminuir o crescente déficit habitacional. Por outro lado, o fato de uma parcela significativa da população recém imigrada não ter sido absorvida pelo mercado de trabalho local, desencadeou um processo de formação de um mercado imobiliário informal ou marginal. Este mercado se manifestava através do parcelamento e da venda de lotes sem que fosse submetido à aprovação da Prefeitura, através de contratos particulares de compra e venda, ou ainda através da ocupação de áreas públicas, ou mesmo de terrenos particulares. Em função da dimensão que esse processo assumiu, o mesmo atraiu a atenção de diversos agentes, inclusive políticos, que auferiram vantagens, ora coordenando a ocupação, ora promovendo ações para regularizar a situação daqueles ‘infelizes’.” (p. 69).

Veremos em um próximo texto como a ocupação das terras de mangue foi funcional ao processo de industrialização na medida em que diminuiu ou mesmo eliminou um componente importante da reprodução da força de trabalho. A teoria econômica crítica (e não apologética e liberal, que ainda equaciona a questão da acumulação como resultado da poupança) propõe que o salário do trabalhador serve à recomposição da sua força de trabalho: vestimenta, comida, casa etc. Ou seja, ele recupera e recompõe esses itens essenciais à sobrevivência. Se um item desses é passível de exclusão, então o salário pode ser menor. Em outras palavras: eliminar a necessidade do aluguel (que é substituído pela ocupação de áreas que, aliás, apresentam condições bastante precárias de moradia) acaba por ser funcional à indústria: menor salário, maior acumulação. Voltaremos a isso.

Outro aspecto importante da maneira pela qual ocorreu a ocupação do espaço urbano em Joinville diz respeito à segregação espacial: a divisão entre os bairros nobres e os bairros “operários” ou “caboclos” (Guanabara, Fatima, Floresta, Boa Vista). A própria integração entre esses bairros realizada pela Ponte do Trabalhador era, em grande medida, uma estratégia de incorporação de operários desprovidos de transporte público razoável (apenas munidos de bicicletas) em vista da sua exploração industrial.

Qual o resultado desse processo que foi sumariado brevemente? Os dados secos e imediatos, configurados em gráficos e tabelas, quando não devidamente contextualizados, perdem justamente a história que os produziu, ou seja, passam a ser vistos como dados, naturalizados, dispostos, quando, na verdade, são apenas momentos congelados de um processo muito mais amplo. Nesse sentido, vale notar que esse processo culminou em uma cidade altamente desigual no que diz respeito à relação espaço e renda. Isso pode ser observado no mapa seguinte:

A legenda é a que segue:

Nesse sentido, está-se diante da construção e constituição de uma cidade profundamente desigual. Enfatizamos apenas alguns elementos da desigualdade — a dimensão sócio-espacial — de tantos outros que poderiam ser explicitados (gênero, raça etc.). Referindo-se à figura 6 de sua dissertação (a qual apresenta um mapa de renda em relação à localidade) Naum Santana expressa uma consideração que embora realizada em 1998 ainda conserva, lamentavelmente, sua atualidade:

“A representação mostra uma concentração das famílias com renda superior a cinco salários mínimos na área próxima ao centro da cidade e estendendo-se para a porção norte, em direção aos bairros América, Glória e Saguaçu. Praticamente formando um anel, envolvendo esse núcleo de renda mais elevada, ocorre um cinturão de classes de renda misturadas, formando bolsões de renda média baixa e de renda média alta. A grande, e extensa, periferia ocupa o restante da área urbana, formada exatamente no período do auge da industrialização da cidade, entre 1960 e 1980.” (pp. 28–29)

No próximo texto veremos como esse processo se deu a partir da ocupação do mangue a partir dos relatos contido no livro Projeto Mangue do sr. Marco Tebaldi.

Algumas referências:

Rocha, Isa de Oliveira. Industrialização de Joinville-SC: da gênese às exportações, 1997.

Naum Alves Santana. A produção do espaço urbano e os loteamentos na cidade de Joinville (SC) — 1949/1996, mestrado no Departamento de Geografia da UFSC, 1998.

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