Nós expropriamos 240 mil propriedades de proprietários corporativos através da organização de base

Observatório Urbano de Joinville
6 min readOct 17, 2021

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CHRISTOPHE GATEAU

Daniel Gutiérrez

Publicado originalmente em 29 de setembro de 2021 em truthout.org

A impressionante vitória dos ativistas de base na Alemanha nessa semana — expropriando 240 mil apartamentos de habitação pública pertencentes a proprietários corporativos em Berlim e colocando-os nas mãos dos próprios locatários — tem potencial de reverberar globalmente, inspirando lutas contínuas e emergentes por abordagens mais democráticas e ecológicas no que diz respeito à habitação.

Tendo vencido o referendo, o exército de ativistas de base que compõem a campanha de expropriação agora irão pressionar o governo não somente para respeitar os resultados, mas também para estabelecer nossa visão de propriedade coletiva.

Uma visão democrática e ecológica de habitação

A campanha de expropriação que acabou de obter essa vitória em Berlim é conhecida como Deutsche Wohnen und Co. Enteignen (“Expropriar Deutsche Wohnen e Co.”, nomeada em homenagem a uma das maiores corporações de proprietários de Berlim, a Deutsche Wohnen; ao longo desse texto a campanha será citada como “DWE”). Eu sou um dos muitos ativistas que trabalharam nessa campanha.

Ao invés da propriedade privatizada, os ativistas envolvidos nessa campanha estão propondo o estabelecimento de uma “Anstalt des öffentlichen Rechts” (AöR), agência pública que é legalmente requerida para cumprir sua constituição. O que vai nessa constituição é, por isso, crítico.

Em contraste com os modelos de propriedade privada, AöR’s não são forçadas a ser orientadas pelo lucro, não podem falir e tem de servir a todos os seus usuários. Isso significa que uma AöR não tem que se preocupar com retorno sobre seus investimentos (um dos mecanismos que pressiona os aumentos exponenciais de aluguel) e, ao contrário de cooperativas que servem apenas a seus próprios membros, a AöR tem de servir a todos.

Atualmente, os objetivos políticos da constituição de uma AöR são prover moradias populares, garantir um autogoverno democrático, aplicar políticas de anti-discriminação e construir novas moradias.

Ao invés da propriedade privada ou a clássica propriedade “estatal”, ativistas estão propondo uma estrutura de tomada de decisões dividida em quatro níveis: a cidade, o distrito, a vizinhança e a casa particular. Inquilinos (independentemente de seu status residencial), representantes eleitos pelos inquilinos, trabalhadores da AöR e delegados do governo da cidade — essas serão as forças que definirão a direção da habitação pública de Berlim.

Objetivos ecológicos estão sendo discutidos no esboço da proposta constitucional. Atualmente, a AöR propõe o uso de matérias-primas renováveis e neutras do ponto de vista do clima, ao invés de cimento, aço ou plástico. Isso requer a mudança de fontes de combustíveis fósseis para combustível solar, termal, geotermal e biomassa para aquecimento e eletricidade. Propõe-se o “esverdeamento” dos prédios através de pátios, fachadas e telhados, bem como o estabelecimento de cozinhas comunitárias e refeitórios no interior de prédios de apartamento e até mesmo a redução de unidades residenciais grandes. Além disso, exige-se a transformação do espaço de estacionamento em favor de bicicletários e meios de transporte compartilhados. Por fim, requer-se que os custos ecológicos não possam ser repassados aos inquilinos, o que significa que os aluguéis não podem ser aumentados a fim de cumprir as metas ecológicas. Ao invés disso, fundos para tais projetos virão de fundos já existentes no interior da AöR bem como do cofre do governo, evitando assim a gentrificação ecológica.

É claro que nada disso são cláusulas pétreas e esses objetivos serão objeto de um grande debate no interior da campanha. Contudo, o estabelecimento de uma agência pública desse tipo marca um significativo afastamento da propriedade privada, que tem sido o motor do desalojamento e não tem contribuído em nada para mitigar ou se adaptar às mudanças climáticas, procurando, ao invés disso, somente aumentar aluguéis da forma mais barata e segura. De fato, qualquer renovação que tenha sido feita sob a propriedade corporativa, tem sido em grande parte cosmética, na medida em que provê a base legal para aumentar aluguéis.

A organização da vitória e a organização ainda necessária

Embora os ativistas tenham superado esse obstáculo assustador, ele não foi facilmente alcançado e nem será o último.

O referendo é o resultado de um longo processo de organização que se desenvolveu em resposta à privatização das moradias públicas de Berlim em 2004. Como os fundadores da DWE explicam, as firmas de investimento de capital viram as moradias de Berlim como um porto seguro de investimento, particularmente no contexto da crise financeira. Habitação e outras iniciativas visavam tomar o controle popular sobre a cidade formada contra o aumento dos aluguéis e o redesenvolvimento urbano de projetos focados na acumulação de lucro.

Com o passar dos anos, o amálgama de iniciativas individuais encontrou um beco sem saída, à medida que essas iniciativas perceberam a necessidade de uma resposta mais ampla e sistemática. Foi em 2016 que a iniciativa de inquilinos Kotti und Co. pôs, pela primeira vez, a expropriação como a resposta sistemática ao problema. Além do mais, em 2015, um referendo para reforma pública das moradias públicas foi lançado, mas foi finalmente encerrado devido a um parágrafo ser considerado ilegal de acordo com a legislação da União Europeia. Foi após essas experiências que as iniciativas de inquilinos pela cidade juntaram-se com ativistas do referendo de 2015 sob a bandeira da DWE para expropriar as moradias dos proprietários corporativos.

A vitória foi possível tanto pela organização de longo termo quanto pela abordagem dos organizadores se aproximando do maior número possível de pessoas, independentemente de suas posições políticas originais. Antes deste ano, a campanha se concentrou na organização de manifestações, bem como na disseminação e no apoio a iniciativas de habitação para lutar contra os proprietários corporativos. Esse processo de trabalho de base (seed-and-support process) ajudou a impulsionar uma série de iniciativas que expandiram a área de estímulo inicial, funcionando como uma campanha de educação popular, que mobilizou cada vez mais inquilinos furiosos para a campanha de expropriação.

Então, quando foi permitido à DWE começar legalmente a coleta de assinaturas para pôr a medida em votação, a campanha desenvolveu uma rede distribuída de times por todos os distritos da cidade. Um aplicativo foi criado para que as pessoas pudessem fácil e espontaneamente se conectar a iniciativas de coletas de assinaturas, reduzindo significativamente a barreira de participação. Foi na preparação para essa fase que a campanha desenvolveu uma iniciativa de migrantes composta por berlinenses que não podem votar legalmente devido ao status de residência, para enfatizar ainda mais o déficit democrático do voto, já que 25% dos inquilinos de Berlim estão impedidos de participação eleitoral devido ao status de residência.

A fase de coleta de assinatura foi um sucesso estrondoso, resultando na acumulação de 343 mil assinaturas legais, mais 41.557 assinaturas que foram descartadas devido ao status de não residência. Organizacionalmente, esta fase multiplicou ainda mais suas forças, pois envolveu milhares de pessoas na campanha.

Finalmente, a fase de saída em busca de votos foi composta de uma igualmente ampla campanha porta a porta que foi particularmente focada em alcançar pessoas para além do centro da cidade. Essa organização local foi feita em combinação com uma campanha incrível de mídia que desenvolveu produções impressionantes e habilmente atuou nas mídias sociais ao lado de uma destacada campanha de líderes de torcida que capturou a admiração da imprensa berlinense.

Ao todo, a campanha seguiu um arco de campanha quase ideal, começando com um leve tremor e culminando na euforia de um crescendo estrondoso.

No entanto, a batalha está longe de ser decidida. A provável nova prefeita social-democrata de Berlim, Franziska Giffey, concorreu com a promessa de que interromperia o referendo após a eleição. Na semana anterior à eleição, os social-democratas centristas anunciaram que comprariam quase 15.000 casas de proprietários corporativos, em uma tentativa de diminuir a necessidade de expropriação.

No entanto, Giffey ficou claramente abalada com os bons resultados. Em entrevistas após a contagem final dos resultados do referendo, ela observou que, embora não acredite que a desapropriação ajudaria “uma única família”, os resultados devem ser respeitados, desde que sejam legais.

É certo que será feito um grande escrutínio sobre a legalidade da proposta. Isso não apenas em razão da derrota no referendo de 2015, mas também da derrota do ano passado de um teto de aluguel em toda a cidade, o qual os tribunais alemães derrubaram em abril.

Independentemente dos desafios que virão, no entanto, a vitória desta semana para os ativistas imobiliários é significativa porque demonstra o poder que as pessoas comuns podem exercer por meio da organização coletiva e tem o poder de injetar nova energia nas lutas habitacionais em todo o mundo, mostrando que até mesmo o capital financeiro pode ser colocado em xeque.

Tradução de Paulo Oliveira

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