Licitação: realidade difícil, projeto fraco

Observatório Urbano de Joinville
6 min readSep 11, 2023

por Ermínio Harvey e Paulo Oliveira

Após mais de cinquenta anos, a licitação do transporte público deve acontecer em Joinville.

Ato do Movimento Passe Livre na cidade de Joinville no terminal de ônibus central

Quem tem levantado o debate popular sobre o assunto com excelentes matérias é a newsletter do Guará Jornalismo. Em uma delas, explora-se a questão da suposta dívida pública que a prefeitura possui com as empresas operantes atuais, e de que forma a inclusão desta dívida na atual licitação fere o princípio da concorrência. Isso, na prática, muito provavelmente resultará em um direcionamento da licitação, caso a Transtusa e Gidion concorram. Supostas, pois, de nossa parte há questionamentos quanto à formação desta dívida. É curioso como uma empresa alegue múltiplos e contínuos déficits e ainda lute desesperadamente por sua permanência no transporte, não quebre, tenha passado por uma racionalização de força de trabalho (Joinville foi uma das pioneiras nacionais da bilhetagem eletrônica) e mesmo assim continue operando e, ao que tudo indica, queira permanecer no negócio. É quase como se se tratasse de filantropia. Além disso, a perícia judicial não foi devidamente publicizada e o jornalismo local pouco ou nada sabe do assunto. Como se não bastasse, de 1996 até 2017, a inflação foi de 292% enquanto a tarifa aumentou 567%. Mesmo assim, “devemos”, enquanto população joinvilense, às atuais concessionárias. É risível — para não dizer francamente aberrante.

Evolução da Tarifa de ônibus em Joinville — produzido em 2017 pelo MPL.

De forma inicial, é importante voltar ao óbvio: o processo de se licitar o transporte é naturalmente melhor do que a ilegalidade. Contudo, dado o enviesamento da licitação, nossa posição é por não reconhecer a legitimidade do processo, que nasce deficitário pelas duas questões apontadas: a natureza da dívida e a sua inclusão na licitação. Problemas ligados ao favorecimento de empresas não são incomuns na área, vide Curitiba.

E, além disso, é necessário diminuir as expectativas de que uma nova empresa vencedora, mesmo em uma nova licitação sem os problemas apontados, possa trazer as mudanças que gostaríamos e precisamos ver no transporte público. Existem dois motivos simples para isso: a) O modelo proposto é essencialmente o mesmo e b) As metas descritas no edital, bem como a não retomada do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da cidade, deixam claro que não há uma intenção de prioridade e retomada significativa do sistema de transporte público na cidade.

Em relação ao modelo, questionamos a remuneração e a gestão desta operação. A remuneração das empresas é feita diretamente através do número de passageiros, o que pode criar uma tendência da empresa de reduzir a frota ou número de viagens para maximizar seus ganhos (relação passageiro X quilômetro), o que leva a redução da eficiência e qualidade dos serviços, alimentando inclusive um ciclo vicioso autodestrutivo, onde uma diminuição no número de passageiros leva ao aumento dos custos da tarifa, que por sua vez afasta novamente o número de passageiros.

Uma das propostas que deveria estar sobre a mesa, ao menos para discussão, é a que se encontra em operação em inúmeras capitais do Brasil e do mundo, que se trata da remuneração das empresas pelo quilômetro rodado, desvinculando a demanda da relação dos custos da passagem. Ou seja, a empresa não seria mais beneficiada ao concentrar ao máximo o número de passageiros por ônibus, pois seria remunerada de qualquer forma pelo ente público, possibilitando maior conforto ao usuário.

O problema que surge aqui com essa remuneração seria um eventual desequilíbrio entre os custos e as receitas quando desassociados completamente da relação oferta e demanda. Para isso, continuamos nossos apontamentos e propostas em relação ao modelo de gestão e controle do sistema.

Atualmente, o município entrega praticamente todo o sistema de transporte público municipal para empresas privadas. Isso significa que desde a coleta da bilheteria até a administração das receitas e o controle e planejamento da rede, muito disto está nas mãos diretamente das empresas privadas, sendo o município um mero fiscal.

Acreditamos que o município precisa assumir a sua responsabilidade pelos péssimos índices e garantir o direito social ao transporte — aliás, direito já constitucionalizado no artigo 6º — , gerenciando completamente a bilheteria, as finanças, a administração, coletando os dados, elaborando pesquisas, planejamentos ousados para reconstrução do sistema. E, caso se opte pelo emprego de empresas privadas, que fiquem restringidas às atividades de operação (frota de ônibus, motoristas, manutenção), sendo remuneradas de forma indireta, com base na métrica de quilômetros rodados.

Por hora, não vamos conseguir explorar a nossa defesa de zerar a tarifa de transporte ao usuário diretamente, porém, independente desta discussão, está se solidificando o consenso no mundo todo de que há inúmeras outras correlações e impactos que a falta de um transporte público acessível e de qualidade causa na vida das pessoas. Não é desejável repassar de forma integral o valor da tarifa para o usuário. É necessário um aporte de dinheiro público para a manutenção do sistema, e neste caso, reforçamos ainda mais que este recurso seja gerido por uma administração pública.

Cidadã usuária do transporte público tendo acesso temporário ao passe livre durante mobilização do movimento.

Leia mais em: Tarifa zero: as lições das 67 cidades do Brasil com ônibus de graça

Além disso, gostaríamos de reduzir as expectativas sobre as melhorias que uma licitação trará, em virtude das próprias metas e planejamento (ou falta de) para retomada do transporte público.

É oportuno lembrar que a cidade não possui, desde 2017, a sua fundação Instituto de Planejamento e Pesquisa Urbana de Joinville — o IPPUJ, que de forma geral, era uma instituição multidisciplinar de pesquisa e planejamento com um corpo técnico capaz de qualificar este e outros debates a respeito da nossa cidade.

Dentre os inúmeros materiais produzidos pelo mesmo durante os seus mais de 25 anos de atuação, gostaríamos de debater minimamente o Plano de Mobilidade, que teve a sua segunda edição publicada em 2016. Este material público, trazia a exposição de diversos dados da cidade, pesquisa, correlação com outras práticas mundo afora, estabelecimento de diretrizes, ações prioritárias, instrumentos, metas, indicadores e responsabilidade de cada órgão. Isto ainda dividido por cada modalidade específica e com amplo debate público na sua construção, e que ainda serve, de forma posterior, a questionamentos de interesse público como este.

É natural que muito do que foi registrado naquele material não seria cumprido na íntegra, e seria leviano acreditar que após a pandemia do COVID-19 este plano não tivesse sofrido duras baixas nas suas métricas. No entanto, um estudo do tipo continua sendo extremamente importante para determinar as métricas que irão direcionar e acompanhar a evolução do transporte municipal.

Em que estágio ficamos se comparado ao que foi planejado? Quais serão os pontos revistos, quais são as direções e metas que a prefeitura pretende tomar daqui em diante? As divulgadas publicamente, que constam na matéria do Guará Jornalismo, são pífias e não irão garantir uma retomada com qualidade do transporte, nem próximo dos níveis pré-pandemia, quem dirá avançar em um plano de fato ousado e necessário que o tema exige.

É justo e necessário almejar mais. Joinville parece ter dificuldade de encarar o tamanho que tem (dos problemas também). Estamos vivendo um período de muitas novas ideias e experiências com relação ao transporte público, tendo também o urbanismo ganhado centralidade em discursos e campanhas políticas pelo mundo todo, levando inclusive a gestão atual a promover palestras ressaltando o orgulho de ter recebido um dos prêmios nacionais de “cidade inteligente” em 2023. Contudo, quando se observa com atenção, percebe-se um grande deserto de ideias.

Em conclusão a tudo que expomos aqui, e diante também de temas que nem conseguiríamos explorar com a profundidade necessária por hora, acreditamos que a cidade de Joinville, embora não tenha faltado tempo, está insistindo em uma proposta que nasce morta, e está perdendo uma grande oportunidade de se propor o debate com maior profundidade e responsabilidade sobre uma questão que causará um impacto enorme em toda a cidade, sendo usuários do transporte público ou não, pelos possíveis próximos 30 anos.

Por uma vida sem catracas!

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