Investigando o projeto de licitação: por que o projeto da prefeitura é ruim para a cidade?

Observatório Urbano de Joinville
10 min readFeb 27, 2024

O preço do pão subiu e muito,

Mas abrir a boca inda é gratuito

Heinrich Heine, “Miserê”

Por Paulo Oliveira, professor de filosofia

Foto: Rodrigo Philipps/Agência RBS, julho de 2013 em Joinville

O atual modelo de licitação proposto pela prefeitura de Joinville é completamente incapaz de oferecer uma resposta ao conjunto de problemas de mobilidade que atingem os joinvilenses. Ainda que isso soe como uma afirmação taxativa e quase dogmática, essa conclusão é resultado de uma investigação pormenorizada do documento que embasa o projeto de licitação. Portanto, o presente texto é um convite para se adentrar nas peculiaridades desse documento que, embora árido, é necessário para se compreender o que está em jogo por detrás da linguagem dos tecnocratas da prefeitura que insistem em dizer que Joinville irá protagonizar o melhor modelo de transporte. Esse projeto pode definir os próximos 15 anos da mobilidade urbana da cidade e, por isso, merece uma investigação.

Primeiro problema: a outorga

O problema mais geral diz respeito ao fato reportado pelo jornalista Lucas Kohler:

Reconhecida pela prefeitura de Joinville em 2012, a dívida do município com as empresas Gidion e Transtusa está em R$ 232,3 milhões se atualizada para 2023. O montante estará incluso na licitação. Ou seja, a empresa interessada e vencedora do edital terá que pagar a quantia.”

Ou seja, a empresa, qualquer que seja, que queira participar do processo terá de desembolsar, de antemão, uma imensa quantia. Essa dívida é correspondente a dívidas passadas da prefeitura com as empresas Gidion/Transtusa, na medida em que nem sempre a prefeitura aumentou o quanto as empresas solicitaram, o que provocou, segundo elas, contínuos prejuízos que, agora, devem ser ressarcidos.

O reconhecimento dessa dívida é uma piada patética. Além de as empresas não terem jamais passado por um processo licitatório, aumentaram seguidamente a tarifa de ônibus ao longo dos anos, aliás, muito acima da inflação — como mostramos nesse texto. Ou seja, as atuais empresas querem posar de vítimas: elas forneceram transporte de boa qualidade e a preço acessível (acessível demais, a ponto de estarem sequer arrecadando receitas suficientes), daí que a dívida dela seja “legítima”. Em setembro passado, Ermínio Harvey e eu resumimos assim a questão:

“É curioso como uma empresa alegue múltiplos e contínuos déficits e ainda lute desesperadamente por sua permanência no transporte, não quebre, tenha passado por uma racionalização de força de trabalho (Joinville foi uma das pioneiras nacionais da bilhetagem eletrônica) e mesmo assim continue operando e, ao que tudo indica, queira permanecer no negócio. É quase como se se tratasse de filantropia. Além disso, a perícia judicial não foi devidamente publicizada e o jornalismo local pouco ou nada sabe do assunto. Como se não bastasse, de 1996 até 2017, a inflação foi de 292% enquanto a tarifa aumentou 567%. Mesmo assim, “devemos”, enquanto população joinvilense, às atuais concessionárias. É risível — para não dizer francamente aberrante.”

Segundo problema: aspectos técnicos do projeto de licitação

O projeto de licitação é orientado por um longo documento disponível no site da prefeitura (na verdade, um conjunto de documentos). Aqui iremos nos debruçar no “Termo de Referência”, justamente porque trata do diagnóstico do sistema — ou seja, como a prefeitura entende os problemas próprios do sistema de transporte — e que mecanismos devem ser cumpridos pelos futuros ganhadores da licitação.

Quanto ao diagnóstico, o documento chega à conclusão de que Joinville possui uma baixa parcela da população que busca a mobilidade por transporte coletivo. Os números atuais dão conta que pouco mais que 13% da população usa ônibus e o documento considera um número adequado algo em torno de 20%:

“Estes dados mostram que o transporte pelo modo coletivo, em Joinville, perdeu muita competitividade frente aos demais modais nos últimos anos, considerando que a expectativa, tendo em vista a dimensão do município e as suas características socioeconômicas, seria uma participação, do modo coletivo, de cerca 20% na matriz de deslocamentos da cidade” (p. 57).

E por que as coisas são assim? O documento arrisca o seguinte diagnóstico que, sem ser errado, é apenas uma meia verdade:

“O sistema municipal de transporte coletivo de Joinville já vinha passando nas últimas décadas por um processo de perda de demanda, consequência do crescimento da motorização individual, impulsionada por políticas nacionais, isenções fiscais e de facilidade de crédito para a aquisição de automóveis e de motocicletas, como ainda pelo surgimento de novas formas de prestação de serviços de transporte, primeiro pela emergência de novas modalidades (transportes clandestinos, depois tornados alternativos, mototáxi) e mais recentemente com o surgimento da prestação de serviços de transporte por aplicativos.” (p. 55)

Todos esses elementos são verdadeiros, mas, curiosamente, nenhum deles aponta o problema central. Não há menção aos seguidos aumentos de tarifa do transporte, muitos deles acima da inflação e incompatíveis com a renda da população. Não há menção ao fato de que o transporte é uma mercadoria que, simplesmente, boa parte da população não consegue acessar ou cujos custos de acesso levam ela a preferir o transporte individual ou mesmo a não mobilidade (nesse caso, obviamente, não se trata de “preferência”, mas de um imenso constrangimento social). Por que o projeto não coloca a questão nesses termos ou ao menos leva essa dimensão em consideração? A resposta é simples: se ele o fizesse, as próprias bases da licitação teriam de ser revistas. Isso porque a licitação simplesmente perpetua a lógica do transporte como mercadoria e sequer pretende oferecer uma passagem mais módica. Conforme a reportagem anteriormente citada,

“Com os investimentos previstos na licitação, o valor da tarifa técnica, projetada pela prefeitura, pode chegar até R$ 8,58. A ideia do prefeito de Joinville é manter o custo atual para os usuários. A tarifa zero, que passou a ser adotada em diversas cidades de Santa Catarina, foi descartada pelo chefe do Executivo.”

Em resumo: o mundo prometido pela licitação é a atual tarifa cara de transporte que continuamente expulsou usuários do sistema.

Todavia, o projeto reconhece que é preciso atrair mais usuários para o transporte coletivo a fim de ter ganhos de escala. Como fazer isso? Eis a proposta:

“Portanto, há que serem estudadas alternativas que possam recuperar a atratividade do transporte público coletivo, incluindo por exemplo, transporte público sob demanda, através de um serviço flexível de mobilidade urbana no qual as rotas são definidas de acordo com as necessidades dos usuários, em vez de preestabelecidas com trajetos e horários fixos. Esse sistema permite também a diversificação de tipologia de frota, podendo utilizar-se de veículos de menor porte para regiões com menor demanda.” (p. 57)

O que seria esse “transporte público sob demanda” é simplesmente um enigma do ponto de vista do documento, que não volta ao assunto. Além disso, a própria formulação revela a dimensão vaga inerente à proposta: “há que serem estudadas”. Em resumo, não há proposta. Pior: ao invés do oferecimento de transporte de massa, a um preço adequado (ou, melhor, gratuito), com alta oferta e boa qualidade, fala-se de transporte sob demanda. Isso contraria as melhores práticas das sociedades que conseguiram oferecer respostas ao problema da mobilidade urbana.

O documento ainda menciona elogiosamente a atuação da prefeitura no que diz respeito às ações relacionadas à perda de demanda:

“A Prefeitura já vinha atuando para minimizar esses efeitos, por um lado, aportando recursos do orçamento municipal (subsídio) para complementar a receita do sistema de transporte, e por outro com iniciativas de planejamento para a racionalização da rede de linhas” (p. 59).

Essa é uma observação que, considerada o ponto de vista dos usuários, é surpreendente. Isso porque o subsídio dado — doado — às empresas de transporte, de fato, visa garantir que a tarifa não aumentasse mais ainda, embora isso ainda mereça uma crítica pontual, na medida em que não implicou em maior controle público do serviço. Porém, mais criticável ainda é a ideia de que a prefeitura atuou na “racionalização das linhas”. Como já mencionado em outro texto, Joinville em 2017 tinha 277 linhas. Hoje, 200 linhas. Isso é racionalização: diminuição de linhas porque elas não são lucrativas o suficiente. Em que isso ajuda o transporte? Se o ônibus da sua localidade já era ruim, caro e demorado, agora, com menos horários ou mesmo com o cancelamento da linha, qual sua alternativa? Em outros termos: o documento confunde o que é bom para o equilíbrio econômico das empresas com aquilo que é efetivamente bom para a sociedade joinvilense.

Um dos pontos mais cruciais do projeto de licitação diz respeito à forma de estimar o número de passageiros em relação à oferta. Diz o documento:

“O planejamento operacional compreende o redimensionamento periódico da oferta de viagens em uma determinada linha, tipo de dia (dia útil, sábado ou domingo) ou durante um período do dia, para o atendimento de alteração na demanda de passageiros ou de qualquer outro parâmetro operacional, que assim o justifique, observando sempre a manutenção do equilíbrio econômico e financeiro da Concessão.” (p. 65).

Por detrás dessa observação reside um erro metodológico capital. Ou melhor, dois erros. O primeiro é colocar o equilíbrio econômico das futuras empresas em primeiro plano: medir a qualidade de um serviço público pela capacidade lucrativa imediata dele é uma contradição em termos e uma estupidez. O segundo erro, por sua vez, diz respeito à ideia de cálculo de oferta para dimensionamento da demanda. Como fica claro, ele só considera a demanda já interiorizada pelo sistema: ou seja, se o ônibus encher demais, é preciso aumentar os horários; se o ônibus não encher, é possível diminuir os horários. Qual o problema disso? A questão reside em se considerar os usuários que já estão dentro do sistema, quando deveria considerar, na verdade, a base de usuários potenciais, isto é, o grande conjunto da população joinvilense que, por uma razão ou outra, deixou de utilizar o transporte. E essa parcela da população permanecerá sendo desconsiderada: quais os incentivos para que aquele que abandonou o sistema (que, digamos, com uma série de sacrifícios em seu orçamento, comprou um carro ou uma moto) reentre no sistema? Por que ele faria isso com uma tarifa tão alta e uma qualidade tão ruim?

A questão toda é que esse modelo de estimação de demanda tenderá, no médio e longo prazo, a justificar contínuas “racionalizações” (a palavra aqui é um eufemismo para o corte de linhas e horários). É preciso ser justo aqui e dizer que os cálculos imediatos estipulados pelo projeto aumentariam a quilometragem e as linhas. O aumento do número de linhas, no entanto, é absolutamente risível: 5 linhas — de 200 para 205 (lembrando que há dez anos tínhamos 277, conforme mencionado). Os números de quilometragem são mais expressivos:

“A especificação para a concessão apresenta um aumento de 23,8% da frota em operação em relação à data de referência do estudo (março/2022), com aumento de 16,7% na quantidade de partidas em dias úteis, devido ao aumento da utilização de veículos de porte adequado, e um aumento da produção quilométrica mensal em 29,5%” (p. 106).

Ainda assim, a tendência de número de usuários é de queda e, permanecendo um modelo privado de alta tarifa, continuará de queda. Portanto, ainda que imediatamente os números soem atraentes, eles são insuficientes, porque não atingem o fulcro do problema, e em breve devem ser vítimas da racionalização automática que os próprios termos da licitação impõem.

O projeto ainda contém outros problemas que dizem respeito a uma forte permanência da iniciativa privada na gestão do transporte: “Caberá à Concessionária o recebimento das receitas auferidas mediante a cobrança de tarifas diretamente dos usuários dos serviços e a eventual distribuição entre os operadores do Sistema” (117). A licitação permitiria a alteração de que a concessionária cuidasse da gestão e ela passasse a cargo da prefeitura. Isso seria melhor do ponto de vista da transparência do sistema, do desenho dele e da vigilância das contas por parte do público em geral. Além disso, a manutenção da infraestrutura do sistema — terminais, pontos de ônibus — caberá, segundo o documento, à iniciativa privada. Ainda que isso soe como diminuição de custos para a prefeitura, é bastante discutível deixar à iniciativa privada os cuidados desses espaços. É mais uma dimensão da privatização do espaço público ao qual será encarregado um sistema que tem sido mal gerido há décadas pela iniciativa privada.

Contudo, nem tudo é ruim no projeto. Há aspectos positivos: a integração temporal da tarifa de ônibus (p. 109), o aumento da infraestrutura, ainda que seja duvidosa a ideia de construção de novos terminais (p. 124), alguma responsabilização ambiental (p. 224). Todavia, a ideia aqui não é exprimir a consoladora ideia de que “apesar de tudo, há melhorias”. Não, apesar de melhorias pontuais, o essencial está errado e mal projetado, implicará na diminuição de linhas, na contínua cobrança de tarifa, no baixo grau de publicização das contas do sistema. Isso sem nem lembrar do vício de origem que é a incorporação da dívida no próprio edital de licitação.

Os sinais não são bons. Ainda assim, no conjunto do país a ideia de tarifa zero tem ganhado adeptos e governos municipais. Isso é importante, porque ela se tornou uma força material (política, mobilizatória, eleitoral). É óbvio que Adriano, seus vereadores (os assumidamente a favor da sua proposta, os passivamente a favor de sua proposta), os jornalistas que não tão sutilmente o defendem em todos os espaços, não irão aderir a ela. Disso se segue que há todo um espaço para a política que foi aberto pela licitação: a ideia de repensar o transporte em Joinville está em disputa — e a tarifa zero é a única proposta razoável para aumentar o número de usuários, diminuir acidentes de trânsito, aumentar a qualidade de vida, subtrair carros das ruas. Para terminar como comecei, lembro o poeta alemão em seu “Os Tecelões da Silésia” pois ainda está expresso nesse poema a tarefa política necessária:

Maldição, ao Rei, rei dos ricaços

Da miséria faz tão pouco caso;

Nos roubou até o último centavo

Para nos lançar nos braços do carrasco –

Nós tecemos e tramamos!

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