Análise comparativa financeira do transporte público
Com quem deveríamos estar comparando nosso transporte e sob quais parâmetros?
Por Ermínio Harvey, Arquiteto e Urbanista

Em recente anúncio de aumento da tarifa de transporte público em Joinville, elevando para R$ 6,50, a prefeitura justificou este reajuste com base em comparações com cidades da região como São Bento do Sul, São Francisco do Sul e Rio Negrinho. Essa argumentação gera controvérsias, especialmente considerando que Joinville é promovida como uma cidade tecnológica, competitiva e alinhada às melhores práticas internacionais. Comparar com cidades de porte significativamente menor — com média de 50 mil habitantes — parece incoerente com essa visão. Com 616.317 habitantes, Joinville é 12 vezes mais populosa que as cidades comparadas pela prefeitura.
E com todo respeito às cidades citadas, que devem operar dentro das suas condições e também contradições, este texto não busca desqualificá-las, mas sim apontar que as referências utilizadas pela prefeitura não condizem com os desafios e ambições de Joinville. Defendemos que a municipalidade deva tratar o tema com maior seriedade e se inspirar em cidades que possuem maior notoriedade em gerir essa questão.
Entendemos que comparações de forma geral podem ser problemáticas, principalmente em temas que exigiriam aprofundamento e poderiam incluir uma infinidade de parâmetros, mas o trabalho modestamente desenvolvido aqui deve servir como provocação e reflexão inicial sobre alguns dados que julgamos interessantes comparar, situando a situação de Joinville frente algumas outras cidades do país e do mundo, dando enfoque no aspecto do impacto financeiro ao usuário do transporte.
Critérios de comparação
- Número de habitantes;
- Porcentagem de pessoas que utilizam o transporte público;
- Proporção do custo da tarifa repassada aos usuários frente ao salário mínimo — (considerando custo da tarifa de cada cidade, 2 passagens por dia, em 22 dias trabalhados, frente ao salário mínimo nacional, convertendo quando necessário);
- Porcentagem de subsídios em relação ao custo total de operação.
Dentre as cidades brasileiras analisadas, além de Joinville, pesquisamos:
Cidades Brasileiras
- São Francisco do Sul (SC) — Cidade mais próxima da média de habitantes entre as cidades citadas pela prefeitura como critério para o aumento (12 vezes menor que Joinville);
- Caucaia, (CE) — Maior cidade do Brasil com tarifa zero (2 vezes menor que Joinville);
- Curitiba, (PR) — Considerada um modelo de mobilidade, porém vem sofrendo quedas constantes e verticais (3 vezes maior que Joinville);
Cidades Estrangeiras
- Berlim (Alemanha) — onde metade da sua população usa o transporte público, seu sistema integrado composto por trens, bondes, metrôs e ônibus são geridos por duas empresas estatais: a Berliner Verkehrsbetriebe, municipal e a Deutsche Bahn AG, federal (Berlim é 6 vezes maior que Joinville);
- Praga (República Tcheca) — uma das maiores taxas de utilização de transporte público do mundo, geridos por uma empresa pública de transportes (Dopravní podnik) (A cidade é 2 vezes maior que Joinville);
- Madrid (Espanha) — Maior cidade e sistema de transportes públicos da Espanha, é também gerido por empresas públicas (EMT Madrid de ônibus e Metro de Madrid S/A para o metrô (5 vezes maior que Joinville);
- Tallin (Estônia) — uma das primeiras, maiores e mais conhecidas experiências do tarifa zero do mundo (Joinville é maior).
Uma advertência metodológica: encontrar dados corretos e minimamente atualizados já foi algo suficientemente desafiador na realidade brasileira, porém com a barreira linguística se tornou quase impossível pesquisar em países em desenvolvimento com uma realidade próxima da nossa, inviabilizando uma comparação maior. Por fim, pulamos este recorte intermediário para algumas cidades europeias, tidas como referência no transporte público mundial, onde se encontrava material abundante. Entendemos nossas diferenças geopolíticas, porém consideramos relevante observar esses modelos bem-sucedidos, amplamente reconhecidos por pesquisas acadêmicas, dos quais avaliam tempo de espera, número de estações, distâncias, entre outros parâmetros, que embora fossem relevantes para a discussão, acresceriam de forma exagerada o trabalho.
Dados Comparativos:
A tabela a baixo resume dos dados coletados:

- *Em São Francisco do Sul, o subsídio cobre R$1 por passagem, mas não há dados precisos sobre a porcentagem total.
- ** Dados convertidos considerando a moeda local.
Segue abaixo apresentado em modelo de gráfico de barras para uma comparação visual da tabela anterior:
Durante a pesquisa, encontramos bons materiais compilando vários resultados relacionados ao tema pesquisado. Entre eles, destacamos gráficos da relação das fontes de receita do transporte público nas cidades europeias, tanto uma análise da média das cidades no período de 2013 a 2019 como também uma análise por cidade no ano de 2019. Incluímos também um gráfico com a porcentagem de usuários do transporte público em um dia típico, por cidade europeia. Segue para análise:
Análise dos Dados
- É clara a relação do número de usuários com a forma de financiamento do sistema, sendo a média brasileira muito inferior;
- Os custos da tarifa pagos pelos usuários dos sistemas brasileiros, em proporção ao salário mínimo local, é de 2 a 3 vezes mais alto do que o pago por cidadãos europeus, realizadas devidas conversões;
- No Brasil, 13% das cidades com transporte público subsidiam o seu sistema. Nestas cidades, a média dos aportes de recursos públicos é de 30% e Joinville faz metade deste valor, ou seja, 15%.
- Nas cidades europeias, são subsidiados em média 50% dos custos operacionais, e algumas ainda combinam outras formas de desoneração ao usuário na tarifa, como aportes provenientes de publicidades e propaganda, para em último caso taxar o usuário, em tarifas inferiores a 8% do salário mínimo local (Joinville custa quase 19% o valor do salário mínimo ao usuário);
- Os subsídios pagos nas cidades europeias vem de uma constância de décadas de investimentos, em proporções parecidas ano a ano, mesmo antes dos impactos da COVID-19;
- O volume de dinheiro público empreendido no sistema de transporte público europeu não serve apenas para cobrir a tarifa e sim também para criar, atualizar e expandir a sua infraestrutura, criando ofertas, aumentando a sua capacidade, que por fim resultam no aumento da demanda, que é monitorada por pesquisas frequentes, com metas estabelecidas. É uma prova concreta de que a demanda pode ser criada e mantida através da oferta, contradizendo a maioria das “justificativas” da prefeitura quando se respondem a pedidos de retomadas de linhas e horários perdidos na pandemia ou na última década, argumentando de que “não existe demanda”;
- Na Europa, a ampla maioria dos sistemas de transporte são geridas por empresas públicas — ainda que algumas deleguem a operação do serviço a iniciativa privada, porém a sua estrutura e inteligência é coordenada por empresas públicas e por vezes combinando recursos e gestão de esferas municipais, estaduais e federais, dada suas dimensões;
- Há, nas cidades europeias, um claro entendimento e ligação do transporte individual com problemas relacionados às questões climáticas, contendo metas, investimentos, leis e ações diversas para uma diminuição no seu uso. No Brasil, até a década passada, R$8 entre cada R$10 reais investido em infraestrutura de transporte era destinado para o transporte individual motorizado e somente R$2 para o coletivo. Não conseguimos atualizar os dados, porém é pouco provável que a situação esteja significativamente melhor.
- É de extrema importância e urgência para as nossas prefeituras produzir dados, estabelecer metas e monitorar a eficiência do nosso transporte público, além de disponibilizar publicamente como forma de transparência, democracia e seriedade, para que nós, e outras entidades civis possamos discutir, cobrar e participar mais ativamente de temas que definem parte considerável do nosso presente, considerando o tempo e dinheiro gasto no transporte público, como também parte do futuro, considerando o impacto ambiental que o modo de se movimentar pela cidade causa;
Subsídios
Entendemos que o tema do repasse de dinheiro público para empresas privadas, como é e provavelmente continuará sendo o nosso caso não seja exatamente a solução melhor solução. Também não é a nossa primeira opção ficar destinando dinheiro público na mão de empresários, principalmente sem uma modificação estrutural, como já escrevemos em 2023.
Gostaríamos que muitas coisas desta licitação em curso estivesse aberta a de fato um debate público em audiências, mas não é o caso. Contudo, ainda assim defendemos o subsídio e a ampliação dele, seguindo a mesma linha de pensamento do Daniel Santini, um dos maiores pesquisadores do tema tarifa zero do país, segundo o qual “A pior tarifa zero, por pior que esteja estruturada, ela é melhor do que um sistema por cobrança”
E adentramos um pouco nessa questão do subsídio trazendo algumas perspectivas.
A primeira perspectiva, que costumamos esquecer pela “naturalização” do processo, é que nossa cidade e economia foram moldadas ao longo de décadas por um modelo de desenvolvimento centrado no transporte individual. Esse modelo exige enormes recursos e espaços públicos para funcionar, sendo, portanto, financiado por toda a sociedade, mas os benefícios deste modelo, quem lucra e quem tem condições de usar estão reduzidos e concentrados a uma parcela restrita da população e a empreendimentos privados.
Em segundo lugar, é fundamental lembrar que melhorias no transporte público têm impacto significativo em diversos setores da sociedade, contribuindo para o aumento da qualidade de vida e gerando retorno econômico, seja para as contas públicas ou para a população. Esses benefícios são em maioria imediatos e impactam diretamente a parte mais vulnerável da população, sendo as objeções ao repasse de dinheiro público para empresas privadas menores e possíveis de serem alteradas no processo, com impactos a médio e longo prazo.
E por último, gostaríamos de reproduzir um trecho presente no site do próprio município de Berlim, que, embora para muitos de nós seja algo batido, corriqueiro, acreditamos que contribua com um tom de uma “autoridade administrativa” exitosa.
Lá, o departamento de mobilidade, trânsito, proteção climática e meio ambiente defende que:
Porque é que o estado de Berlim paga às empresas de transporte?
As empresas de transporte em Berlim devem agir de forma responsável economicamente, independentemente de serem empresas públicas ou privadas. O objetivo de uma empresa é obter lucro. No entanto, um serviço de transporte local otimizado apenas para esse propósito não faria justiça à responsabilidade do estado de Berlim de garantir transporte local acessível e abrangente como um serviço público.
Os serviços públicos significam criar oportunidades iguais de mobilidade para todos os cidadãos. Se não houvesse co-financiamento com dinheiro público, as empresas de transporte teriam que aumentar significativamente as tarifas, eliminar horários não rentáveis em linhas que não têm grande procura, por exemplo, na periferia da cidade, ou reduzir a quantidade de ônibus nos horários com alta demanda. A mobilidade plena só seria garantida para aqueles que pudessem utilizar outros meios alternativos de transporte, como o carro ou bicicleta (a depender das condições meteorológicas e das capacidades físicas); O transporte público, deixaria de estar disponível para todos;
Os pagamentos de compensação, atrelados com a obrigatoriedade da oferta de transporte definido por solicitação do Estado de Berlim, garantem que haja preços uniformes e socialmente aceitáveis e que ônibus e trens também circulem em locais onde, de outra forma, não seriam lucrativos para a empresa. Por outro lado, as empresas de transporte podem ter certeza de que serão pagas de forma justa onde quer que forneçam serviços de transporte. (traduzido com google.)
É compreensível que não concordemos integralmente com todas as afirmações desse trecho. Acreditamos que, diante de nosso atraso em infraestrutura, a participação direta do poder público, pelo menos na gestão do sistema, como ocorre em Berlim, é ainda mais essencial para nós. Esperamos que esse exemplo possa servir como uma referência externa para introduzir, mesmo que minimamente, uma visão social entre os liberais que moldam nossa cidade, se é que possível ou que algum deles nos leia. O texto demonstra que os argumentos apresentados não são revolucionários, utópicos, ou fruto de um idealismo desconectado da realidade. São na verdade uma defesa dos interesses da cidade, das pessoas, do clima, da saúde pública, da mobilidade urbana, acima de qualquer coisa.
Conclusão
Joinville, uma cidade que se promove como “inteligente”, precisa se orientar a buscar as melhores referências internacionais em mobilidade urbana. O aumento da tarifa apenas reforça a exclusão de parte da população que depende do transporte público, e alimenta o ciclo de deterioração do sistema que já vivemos, sendo péssimo para a cidade como um todo. É fundamental que a gestão pública compreenda o seu papel, amplie seu corpo técnico e realmente apresente um plano de retomada do transporte público condizente com o porte e relevância que diz ter.
Fontes das menções as cidades brasileiras
https://www.caucaia.ce.gov.br/informa.php?id=684
Europa
https://www.statistik-berlin-brandenburg.de/h-i-6-j
https://www.eiturbanmobility.eu/wp-content/uploads/2024/07/EITUM-Microsubsidies-Study.pdf