Ano novo, nada de novo — Aumento de tarifa e licitação do transporte em Joinville

Observatório Urbano de Joinville
6 min readDec 26, 2023

por Paulo Oliveira

De nada serve partir das coisas boas de sempre, mas sim das coisas novas e ruins — Bertolt Brecht

Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2013/06/mesmo-com-chuva-joinville-tem-manifestacao-historica-no-centro-4175999.html

A prefeitura de Joinville anunciou um novo aumento de tarifa de ônibus a partir do dia 1º de janeiro de 2024. Segundo matéria da NSC, “Com o aumento, a passagem antecipada vai passar de R$ 5,25 para R$ 5,50. Já a embarcada será de R$ 5,75. O reajuste é de 4,7% e R$ 4,5%, respectivamente.” A inflação do período foi de 4,7%, portanto, à primeira vista, tratar-se-ia de uma recomposição simples dos valores defasados. Nada mais falso, contudo. Ainda que hoje se tratem de dados desatualizados, o Movimento Passe Livre Joinville mostrava que em 2017 a tarifa de ônibus, no período entre 1996 até 2017, havia aumentado 567%, ao passo que a inflação foi de 292%. É razoável supor que a margem se mantenha ainda hoje.

Ou seja, no conjunto se trata de mais um aumento extorsivo cheio de consequências, tanto em sua dimensão mais imediata — o significado disso no salário do trabalhador — quanto em sua dimensão mais geral — o que isso significa para a estrutura de transporte de Joinville como um todo.

Gostaria de me manter nesse segundo aspecto e lembrar que Joinville passa por um processo licitatório no transporte coletivo, algo relativamente inédito, ainda que processo semelhante tenha se iniciado no governo Carlito Merss, mas sem continuidade. Esse aumento de tarifa inevitavelmente se insere nesse contexto — de uma maneira muito negativa. Um dos problemas centrais do transporte coletivo é a perda permanente de usuários motivada, em larga medida, pelos contínuos aumentos de tarifa de ônibus, que geram um mecanismo de exclusão (as pessoas simplesmente param de transitar como faziam antes) ou então tentativas de mobilidade alternativas (motocicletas, cujos acidentes impactam fortemente a saúde pública; carros, cujo impacto no trânsito é deletério e sem remédio no longo prazo, dado que não há aumento de vias que comporte uma cidade cuja mobilidade se dê majoritariamente por transporte individual). Segundo o Cidade em Dados (um bom documento que era produzido pelo IPPUJ, mas que tem perdido em densidade de dados que podem ajudar a orientar o conhecimento da cidade e as políticas públicas; a versão utilizada aqui é de 2018) em 2000 um terço da cidade andava de transporte coletivo. Hoje é apenas um sexto.

Alguém poderia argumentar, com alguma razão, que isso se trata de aumento do poder econômico da população e que isso deve ser visto como um “progresso”, mas isso é, grosso modo, uma maneira falsa de encarar o problema. A diminuição do transporte coletivo e o aumento do transporte individual é uma derrota da sociedade. O impacto no trânsito é evidente, de modo que as pessoas têm perdido seu tempo de vida — o bem mais precioso que dispõem — no tráfego. Além disso, os modelos de mobilidade no mundo inteiro, aqueles nos quais vale a pena se mirar, apostam em transporte coletivo massivo. Esse aumento de tarifa, portanto, vai no sentido contrário de todas as políticas razoáveis de transporte em virtude de transferir ao usuário o ônus dos custos e, plausivelmente, afastar mais ainda os usuários atuais.

Ainda que haja aumento de tarifa por ora, poder-se-ia pensar que há uma proposta licitatória que vai, finalmente, contribuir com o aperfeiçoamento do atual sistema. Não é o caso. A atual proposta da prefeitura é, na melhor das hipóteses, medíocre, para não dizer completamente fracassada de partida. Isso porque — e as manifestações na audiência pública do dia 14 de setembro de 2023 testemunham isso — o projeto não prevê quase nada de positivo. Há uma promessa de recomposição das linhas de ônibus — de 200 para 205. Todavia, em 2017 — nem há dez anos atrás — Joinville tinha 277.

Não há qualquer plano de recomposição de usuários, isto é, a proposta de licitação apresentada não se pôs seriamente a pergunta central: “como faremos mais usuários entrarem no sistema?” Não há projeções, não há respostas e não há, sequer, a perspectiva de que a tarifa diminua de preço — o projeto atual fala claramente que isso não irá acontecer. Para ser inteiramente justo, há uma perspectiva de melhora em alguns aspectos relativos à qualidade dos ônibus — como ar-condicionado obrigatório, wi-fi –, mas que, no grande todo, não passam de questões menores para tergiversar sobre o grande nada que é o projeto.

As manifestações na audiência pública do dia 14 de setembro reivindicarem, por sua vez, mais audiências públicas em todas as regiões da cidade. Ou seja, que ao invés de uma audiência meramente formal houvesse um processo efetivamente democrático que se orientasse pelos bairros da cidade. Segundo o Guará Jornalismo, isso levou o vereador Lucas Souza (PDT) a redigir uma moção solicitando mais audiências. Essa moção foi aprovada pela Câmara de Vereadores e desde então o prefeito Adriano Silva (NOVO) não deu quaisquer respostas, o que não soa sequer surpreendente tratando-se de quem é. O projeto de licitação ainda tem outros vários problemas, os quais detalharemos em outros textos nesse Observatório.

A proposta de Tarifa Zero tem se espalhado por todo o país. Em um belo artigo recentemente publicado na Folha de São Paulo, um conjunto importante de pesquisadores recomendaram sua adoção como uma estratégia de diminuição das desigualdades sociais e urbanas com o potencial de estabelecer um novo consenso social semelhante ao Bolsa Família — isto é, o reconhecimento de que tal como é inadmissível que as pessoas passem fome, é também inaceitável que elas não possam se mover na cidade. A atual gestão da prefeitura de Joinville, um completo deserto de ideias no que diz respeito à mobilidade, não traz absolutamente nada de novo — o nome do partido que governa a cidade é, sem dúvida, um “nome fantasia”, uma marca cujo conteúdo verdadeiro contrasta com o nome adotado. Ou seja, há políticas disponíveis e alternativas ao atual modelo de transporte que naufraga a cada dia, mas o poder público está completamente de costas a esse tipo de proposta.

Todo momento de crise poder ser aglutinador para que novos e antigos atores sociais se organizem e pautem o debate em torno do transporte. A experiência do Movimento Passe Livre — e mesmo as várias iniciativas que precederam esse movimento — criaram um sólido debate de como o transporte pode ser organizado a fim de que ele seja um instrumento de ampliação da democracia e do direito à cidade. Tanto esse aumento de tarifa quanto a discussão em torno da licitação bem podem ensejar que haja um processo de reorganização das lutas por transporte público. Do contrário, “Quem manda na cidade” — para lembrar o título de um livro que reconstrói a história das elites em Joinville — continuará com sua hegemonia. A situação, em termos nacionais, devido às várias experiências de Tarifa Zero sendo aplicadas por todo o país, nunca foi tão propícia para que as forças interessadas na construção de um transporte público democrático façam fazer valer sua voz em Joinville. O Observatório Urbano de Joinville, desde já, se soma a esses esforços.

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