Observatório Urbano de Joinville
8 min readFeb 26, 2021

A falência do transporte em Joinville — antes da pandemia

Por Ermínio Harvey, arquiteto e urbanista

Todo trabalhador joinvilense conhece, uns mais, outros menos, a realidade do transporte público na cidade. Linhas e horários insuficientes, superlotação e uma tarifa que consome parte considerável da sua renda. Infelizmente essa situação não é de hoje e tem sido uma constante no modelo adotado em grande parte do país. O resultado da obra é que somente entre 2011 e 2019, o número de usuários diminuiu 23,6%, saindo de 46.961.467 em 2011, para 35.880.079 em 2019, mesmo com a cidade crescendo, em números estimados, 14,5% para o mesmo período. Apenas esse dado já seria suficiente para se pôr em suspeita o modelo inteiro de transporte.

O recorte até o ano de 2019, antes da pandemia do coronavírus, se faz necessário por dois motivos: a primeira é mostrar que o sistema já estava em grave declínio e doente, e, em segundo lugar, que a complexidade da pandemia demanda uma leitura particular, comparação de dados e estratégias próprias, as quais exigem uma análise à parte.

Alguns outros dados se fazem necessários para dimensionarmos o problema. Por exemplo, em 13 anos, o número de carros na cidade cresceu 86,5%. Em 2007 eram 144.878 veículos, e no ano de 2019 Joinville chegou a contar com 270.167 carros. Já as motocicletas aumentaram de 44.600 para 71.964 no mesmo período.

Em comparação, Joinville possui 303 ônibus de linha operando. Estamos falando da maior cidade do estado, uma cidade extremamente extensa, que possui em todo o município (incluindo área rural) 1.814.511 (um milhão oitocentos e quatorze mil e quinhentos e onze) metros de vias públicas. Se colocássemos todos os carros em uma fila única, teríamos pelo menos 1.350.835 (um milhão, trezentos e cinquenta mil e oitocentos e trinta e cinco) metros de extensão ocupados somente por este modal (74,4%). Isto sem considerar que um carro precisa de um espaço dedicado para guardá-lo na residência, mais este espaço considerado na via pública e uma vaga no lugar de destino, sem contar áreas livres para manobras, e tudo isto para se transportar uma média de 1,2 passageiros por viagem, utilizando-se a média de São Paulo para efeitos comparativos.

A nível nacional, a cada 10 reais investidos em mobilidade no país, 8 são destinados ao transporte individual e somente 2 para o transporte coletivo. Estamos falando de uma quantia total de 3,68 trilhões de reais, onde 3,24 tri vão para soluções individuais e 0,44 tri para o transporte coletivo. A priorização deste modelo no Brasil é tão evidente que se fazer uma viagem de carro de 7km o custo é quase o mesmo que o valor de uma tarifa de ônibus, enquanto nas cidades europeias utilizar o carro é 5 a 7 vezes mais caro do que pagar o transporte coletivo.

Não se trata aqui de colocar a culpa destes números no trabalhador que buscou alternativas individuais para não ficar dependendo deste modelo de transporte falido e/ou ficar isolado em seu bairro sem acessar aos bens e serviços das cidades e da região. Há questões da esfera do indivíduo e outras de ordem estrutural; consideremos isso.

Em cima destes dados e outras literaturas, dois pontos vão ser frisados em todo este texto, ou ao menos tem o interesse de estimular um início de uma revisão desta lógica de mobilidade em Joinville. O primeiro é que ao considerarmos como uma cidade consegue “operar” nesta desproporcionalidade, não é utópico ou descabido pensar em uma cidade que arque com os custos de no mínimo dobrar o número de ônibus circulando, criando mais rotas, horários e espaço adequado no seu interior. O segundo ponto é mostrar o que parece ser uma falta de entendimento e responsabilidade do poder público em lidar com estes números. Aqui infelizmente não será possível um destrinchamento de todos os dados, mas falamos de custos indiretos da ordem social (a impossibilidade de acessar a cidade), econômica (subsídios a montadoras de carros, infraestrutura rodoviarista, congestionamentos, recursos públicos na recuperação por acidentes, tratamentos de problemas respiratórios) e ambientais (qualidade do ar, impermeabilização de maior áreas de solo e impacto nas drenagens urbanas, aumento da temperatura média global, etc.) É claro que muitas destas consequências geradas não podem ser resolvidas no âmbito municipal, mas é importante ter em mente quando pensarmos em mobilidade urbana.

Há uma evidente falta de entendimento sobre a responsabilidade do poder público para lidar com estes números. É possível concluir isso uma vez que continuam seguindo o receituário neoliberal de não interferência pública na iniciativa privada, ainda que após contínuos cortes de “custos” — o que pro usuário significa menos linhas, horários, funcionários, salários, etc. — não está sendo possível segurar os custos fixos, levando todo ano a um aumento muito acima da inflação básica que corrige (ou corrigia) os salários da maioria dos trabalhadores, erodindo continuamente a base de usuários, que, assim, procuram saídas individuais para a sua mobilidade. O pior dos dois mundos: aumento de tarifa e queda na qualidade.

E para introduzir essa conversa precisamos encarar e desmistificar algumas coisas. Ainda que empresas indefensáveis como Gidion e Transtusa, que estabeleceram toda uma rede de influências, operam em um processo juridicamente questionável, não são transparentes quanto aos seus custos de operação, mesmo que elas deixem de existir, a verdade é que muito provavelmente qualquer outra empresa privada operando neste modelo não poderia fazer grandes diferenças, pois os custos fixos, a extensão da cidade e o modelo como a tarifa é onerada continuariam sendo os mesmos. Portanto, precisamos ter cuidado quando se conclui que o problema do ônibus na cidade é a falta de competitividade do mercado. Uma leitura que muita gente adora repetir, mas que impede de enxergar o verdadeiro problema: a forma como a tarifa é cobrada retroalimenta todo este ciclo de autodestruição do próprio transporte. A questão aqui é estrutural e exige uma ação rápida, grande e coordenada pelo poder público, que envolve desde um planejamento urbano voltado para o desenvolvimento do transporte público, além de questões tributárias, de fiscalização, de modelos de operação, etc. Além disso, o mais difícil, é que essas políticas exigem uma continuidade de projeto em algo que o retorno (financeiro e político) se obtém a médio e longo prazo, porém impacta positivamente em diversos outros custos da administração pública.

É justo ressaltar também que alguns compromissos, planos de mobilidade e certas ações foram executadas ao longo dos últimos anos, embora claramente descontinuados após a extinção do IPPUJ, mas que demonstraram serem insuficientes para trazer resultados expressivos, ainda que pontualmente se tenham melhorado alguns trajetos, com os tímidos e já odiados corredores de ônibus.

Nos exemplos europeus e norte-americanos, mesmo com cidades mais densas, que resultam em grandes vantagens de demanda para se operar e se sustentar, o transporte público é tratado como investimento público e recebe extensos subsídios governamentais, não onerando exclusivamente e diretamente os usuários do transporte público. Os motivos são inúmeros e vão desde a óbvia possibilidade de transportar mais pessoas por m², garantindo somente assim melhorias na mobilidade, além das questões indiretas elencadas anteriormente. Ou seja, o poder público que desconhece e ignora estas correlações além de não resolver o problema fundamental da mobilidade urbana, que continua caótico, acaba por criar uma cidade insalubre, inacessível a parte das periferias e aplica austeridade para “conter” gastos de outras áreas indiretamente relacionadas, não atacando a matriz dos problemas.

Algumas tímidas propostas brasileiras estavam se materializando para um programa de financiamento, seja através de impostos sobre aplicativos como o Uber, seja pelos combustíveis ou até mesmo sobre propriedades em determinadas regiões. O fato é que isto precisa ser puxado pelo poder público de imediato, ampliando e sustentando uma oferta maior que a demanda atual, sem perder de vista um planejamento territorial que busque estruturar um modelo habitacional de alta densidade ao longo dos principais eixos e principalmente nas diversas centralidades urbanas que concentram os maiores pontos de encontro da cidade. Aí sim uma solução de mercado poderia contribuir, tendo este estes e outros parâmetros bem definidos para o desenvolvimento orientado ao transporte sustentável (DOTS), onde as transformações urbanas viriam para criar a demanda da oferta induzida, contribuindo indiretamente com outras regiões onde a mesma solução não seja desejável ou possível.

Aqui cabe um parêntese: não se trata somente de um planejamento urbano que trate somente permissividade ou uso do solo. É preciso encarar, assim como Londres, Berlim, Barcelona, e diversos outros exemplos, que é preciso também mecanismos de controle do estado sobre a especulação imobiliária e que é necessário garantir que populações de baixa renda também tenham acesso a estes empreendimentos e aos benefícios desta conectividade.

No mesmo sentido, um levantamento mais detalhado sobre custos indiretos que são puxados por esta erosão da base de usuários, e que levam a saídas individuais por outros modelos de transporte, a própria franzina densidade urbana em Joinville também merecem estudos a parte em outra oportunidade para qualificar o debate na cidade, porém no mundo se observa grandes e sólidas relações da alta densidade habitacional com um robusto modelo de transporte de massas, onde fica evidente que é indispensável a aplicação de recursos públicos e um direcionamento governamental desta oferta e demanda através do planejamento urbano, além de, claro, garantias de oportunidades de acesso a estes imóveis onde foi alocado um grande volume de capital público, não somente por justiça e redistribuição, mas por serem diretamente as classes mais baixas que mais se utilizam deste modelo de transporte.

Logo, está na hora de encarar que esta política de austeridade e desresponsabilização do poder público, que joga nas costas do trabalhador todo o custo de operação de um sistema, é o principal fator para a queda do número de usuários do transporte público, e, consequentemente, da tão falada falta de mobilidade em Joinville. A resposta a esse conjunto de problemas passa pelo fortalecimento de políticas públicas que encarem a especulação imobiliária, revitalizem o transporte público e ofereçam uma tarifa minimamente acessível que leve à reconstrução da base de usuários necessária para uma verdadeira melhoria na mobilidade urbana.

Algumas referências para a elaboração desse texto:

Joinville — Cidade em Dados — Ambiente construído, 2020 (disponível em https://www.joinville.sc.gov.br/publicacoes/joinville-cidade-em-dados-2020/ )

https://diariodotransporte.com.br/2018/12/04/de-cada-10-reais-investidos-em-infraestrutura-de-transporte-apenas-2-reais-foram-para-o-transporte-coletivo/

https://diariodotransporte.com.br/2016/01/24/onibus-consegue-aproveitar-melhor-ate-22-vezes-mais-o-espaco-urbano-em-relacao-ao-carro-para-realidade-de-sao-paulo/

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